Quão elevado é o QI da Inteligência Artificial?
PROXXIMA – 03/05/2019
José Flavio Pereira (*)
Nas vestes de empreendedor no emergente mercado de Inteligência Artificial decidi escrever este texto calçando os sapatos de quem está do outro lado do balcão: as empresas que buscam contratar serviços de IA e investidores adrenalizados em surfar a nova onda.
Em meu primeiro artigo, procurei ajudar o leitor a entender quais os passos essenciais para adotar Deep Learning e Machine Learning. Agora, trago uma visão 360o para contemplar todos os players do mercado – as empresas, que querem utilizar a tecnologia dos algoritmos para se tornarem mais produtivas e eficazes; os fornecedores, interessados em aproveitar a aceleração do mercado para criar novas fontes de receita e gerar novas oportunidades de negócios; a própria sociedade, ansiosa por entender qual o real impacto que a aplicação massiva da IA causará nos relacionamentos entre as pessoas e se irá gerar desemprego substituindo profissionais por robôs; e a gestão pública, preocupada em entender o impacto nas estruturas e alicerces de seus tentáculos.
Seja você quem for, empresário, investidor, administrador público ou potencial usuário de IA, anote bem: antes de avançar com a implementação de qualquer projeto envolvendo algoritmos, é fundamental ter cautela.
Uma pesquisa da empresa de venture capital londrina MMC concluiu que há muitas startups e empresas de tecnologia tentando embarcar na nave da Inteligência Artificial para atrair investidores, mas que, na realidade, estão longe deste universo. O estudo analisou 2830 empresas de 13 países da União Europeia e concluiu que 40% delas não mostram evidências de que a IA seja sua principal frente de negócio.
“Todo pitch que assisto hoje em dia inclui IA. Produtos em quase todas as áreas estão sendo ‘reiventados’ com a IA como seu foco principal. Mas o atual nível de interesse dos investidores esconde o fato de que, apesar das técnicas de IA serem úteis para resolver certos problemas, elas não são aplicáveis a todos os casos. Adicionar um algoritmo pronto a um velho software não irá necessariamente ensinar novos truques”, escreveu Mike Lynch, fundador da Invoke Capital em artigo na Wired.
“O entusiasmo dos investidores irá se dissipar com as primeiras falhas, mas isto não será o fim da IA. Haverá uma retomada na medida em que a indústria reavaliar os problemas que está tentando resolver. E então haverá um ressurgimento do interesse quando aqueles que compreenderem a questão usarem o poder das ferramentas de IA para criar soluções robustas”, acrescentou Lynch.
As observações de Lynch refletem muito bem a euforia desenfreada que temos presenciando no mercado. Como líder e precursor de uma empresa que utiliza IA, sou constantemente bombardeado com ofertas mirabolantes, solicitações de clientes que beiram um conto de fadas e projetos que nunca serão entregues.
É comum players de grande porte baterem à minha porta para tirar dúvidas e tentar entender o que, de fato, está acontecendo. E o script é geralmente assim: “Flavio, uma empresa “X” veio aqui, nos prometeu diversas entregas, passaram-se 6 meses, nada aconteceu e estamos te ligando para você nos salvar”.
Minha resposta é quase sempre a mesma: o que essa empresa prometeu é impossível de ser viabilizado; pelo menos da forma como foi apresentado ou você imaginou, já que existem dezenas de técnicas para se aplicar à mesma problemática.
O número de possibilidades que existirão para resolução do mesmo problema beira o infinito, já que todas as variáveis impactam no resultado final da solução. A qualidade e quantidade de dados disponíveis para treinamento do modelo neural, os algoritmos e técnicas que serão utilizados, o tipo de processador gráfico, as técnicas de retroalimentação do modelo para treinamento assistido ou automático, enfim, todos os fatores alteram a entrega final do trabalho. Por isso, sou da opinião de que não se pode esperar muito dos modelos de IA até serem efetivamente testados na prática, com métricas claras e objetivas para, então, seguir com a evolução do modelo.
Lamento pelos clientes. É muito arriscado uma empresa se comprometer com entregas em um momento tão quente do mercado como esse. Cria-se uma expectativa gigantesca do outro lado, o comprador se compromete com “N” outras estruturas, e, no final do dia, nada acontece. Ou, pior ainda, o que não é incomum, a entrega agrava ainda mais a situação.
Do lado dos VCs e investidores a frustração pode ser a mesma dos clientes caso não façam uma análise cuidadosa de onde estão aportando capital. E o que não falta são startups na pista procurando ingressar no seleto clube da IA. Afinal, há excelentes razões para agregar IA no pitch. De acordo com a MMC, o investimento nestas startups pode ser 15% a 50% maior que a média e o número de aportes nos últimos cinco anos cresceu impressionantes 15 vezes.
Fato é que todo este hype em torno da Inteligência Artificial é fruto da imaginação que criamos inspirados pelos filmes de ficção científica. O que não quer dizer que os sistemas não se tornarão cada vez mais “inteligentes” e autônomos.
Os analistas fazem previsões de crescimento exponencial da tecnologia. De acordo com estudo da Allied Market Research, o mercado global de IA deverá ter um crescimento médio anual de 55,6% até 2025, quando irá alcançar US$ 169 bilhões.
Não há dúvidas de que a tecnologia de machine learning continuará avançando rapidamente para criar produtos e serviços que sequer ainda podemos imaginar, mas, por enquanto, muita calma nesta hora. No final do dia, o que o cliente quer, seja ele uma empresa ou um consumidor, é utilizar gadgets e softwares que atendam suas reais demandas e não sejam criados apenas para satisfazer o ego dos desenvolvedores e empreendedores.
É bom não esquecer, afinal de contas, que implementar IA demanda muito tempo e dinheiro. Portanto, antes de quebrar a cabeça no laboratório, leve sempre em consideração que não adianta nada inventar uma solução mirabolante se ela não resolver a dor do seu cliente.
Mas, infelizmente, o mercado parece andar na contramão e comporta-se como se estivesse vivendo em um mundo mágico onde tudo é possível. Só que não é. Toda esta ilusão criada em torno da IA leva os potenciais clientes e investidores da tecnologia a desenvolverem uma visão equivocada sobre como as ferramentas podem ser aplicadas na rotina dos negócios.
Engana-se quem pensa haver uma “bala de prata” em aplicações de IA. Na realidade, o que existem são frameworks genéricos que podem ser treinados para o banco de dados daquele cliente específico. Por mais que exista no mercado um produto “genérico” de leitura e interpretação de contratos, por exemplo, a aplicação da regra de negócios é totalmente diferente do cliente “A” para o “B”. O que quero dizer é que as aplicações de IA serão, quase sempre, um trabalho “tailor-made”, feito sob medida para cada cliente, já que a IA segue as regras de negócios particulares dos processos a serem automatizados em cada empresa.
O levantamento da MMC mostrou que a maior parte das startups oferece tecnologias de chatbot (26%) e de detecção de fraudes (21%), uma evidência de que ainda não chegaram ao mercado negócios com soluções “fora da caixa”. Mesmo os “chatbots” carecem de treinamento, já que a IA não acessa o histórico de conversas entre uma empresa e determinado grupo de clientes. E lá se vão mais alguns meses para “calibrar” o “cérebro” do robô bom de papo.
Dito isso, se você está analisando implementar IA em sua empresa, comece por identificar a real necessidade, o impacto que poderá gerar e se o investimento alcançará o retorno esperado (ROI) dentro do prazo estabelecido. Mais ainda, avalie o quanto está disposto a absorver de falhas no processo, algo totalmente previsível em se tratando de uma tecnologia ainda em fase experimental. Os processos que não aceitam nem 0,01% de erros estão sujeitos a não terem aplicação de IA, ou terão IA aplicadas em alguma etapa, tornando-os mais produtivos, porém, sem automação do princípio ao fim.
Um elemento importante a considerar é a essencialidade de ter dados estruturados, principalmente para aplicações voltadas para setores como saúde, finanças, varejo e mídia/entretenimento, que a MMC indica como os que mais utilizam Inteligência Artificial para melhorar a performance de vendas ou automatizar processos.
Há uma correlação direta entre a complexidade algorítmica e o sucesso de implantação da IA. Desde o boom da IA temos colecionado casos de fracasso que demonstram o estágio ainda embrionário da tecnologia levando em conta onde ainda poderemos chegar. Há situações mais sensíveis, como na área médica, onde tentar substituir profissionais por máquinas pode trazer riscos à vida, uma razão indiscutível para só colocar um sistema em operação quando a IA tiver total acuracidade e for exaustivamente testada.
Foi o que aconteceu com o Watson (recomendo este artigo!), da IBM, que fez uma parceria malsucedida com o M.D. Anderson, referência mundial em pesquisa e tratamento oncológico. O hospital desembolsou US$ 62 milhões na plataforma para auxiliar os médicos no diagnóstico de doenças. O resultado não podia ser mais assustador – o Watson sugeriu tratamentos inadequados e que podiam até mesmo levar à morte. A iniciativa foi suspensa e não há planos em vista para ser retomada.
Outros vários casos envolvem as gigantes de tecnologia que enfrentaram alucinações em seus sistemas de machine learning, como o chatbot do Facebook, que foi desligado após ter desenvolvido uma linguagem própria; o Google Allo, que associou a imagem de um homem com turbante com a imagem de uma arma; o voicebot Google Home, que gravou milhares de minutos de conversas dos usuários e enviou os registros ao Google; o Uber, que teve um acidente fatal com seu carro autônomo, o iPhone X, da Apple, que teve seu sistema de reconhecimento facial hackeado pela empresa vietnamita Bkavfound com o simples uso de uma máscara; e, mais recentemente, o Google/YouTube que identificou o infeliz incidente da Catedral de Notre Dame como uma conspiração do 11 de setembro nos Estados Unidos. O porta-voz do Google, inclusive, fez uma mea-culpa dizendo que os algoritmos de IA “as vezes” tomam decisões erradas.
Antes de mais nada, temos que reconhecer a total ignorância da Inteligência Artificial. O sistema só funciona, quando funciona, após ser programado pelo homem e somente pode ser classificado como IA se desenvolver a capacidade de aprender com os dados em camadas mais profundas, o chamado deep learning. A total automação virá exclusivamente com sistemas capazes de ter alto nível de autonomia, o que ainda está longe, talvez alguns poucos anos por se tratar de uma nova tecnologia, de ser uma realidade.
Em seu artigo “How to fail with Artificial Intelligence”, o especialista em machine learning Francesco Gadaleta dá 9 dicas de como levar um projeto de IA ao fracasso. Um deles é “Operar em uma bolha tecnológica”, isto é, desenvolver soluções que não atendem nenhuma necessidade e não levam em consideração as circunstâncias sociais que as tornam necessárias. Em outra dica, ele emenda: “O hype sozinho não é suficiente para uma tecnologia dar certo. Os desenvolvedores de IA devem colocar dinheiro para desenvolver produtos que façam jus ao hype”.
Lynch e Gadaleta têm razão. O melhor a fazer é colocar os pés no chão e baixar nossas expectativas. Antes de projetar ou comprar uma solução de IA, pesquise se seu produto ou solução terão aceitação no mercado e resolvem, de fato, uma demanda latente. Se a resposta for não, volte para prancheta e só saia do papel quando achar que seu sistema de IA tem um QI satisfatório para potencializar a Inteligência Humana. Do contrário, é pura burrice.
(*) José Flavio Pereira é Fundador e CEO da Nuveo, desenvolvedora de sistemas de Inteligência Artificial que resolvem problemas reais de negócios.