Positivo para corona, negativo para transparência
ÉPOCA – 22/03/2020
Carlos Henrique Barbosa
Uso de verbas em ‘estado de emergência’, vigente em vários pontos do país, deve ser monitorado para que casos de corrupção sejam evitados.
Considerando a enxurrada de informações, crises e histeria coletiva que vivemos diariamente – não iniciada, mas agravada com o coronavirus -, ouvir que Estados e municípios declararam estado de emergência ou calamidade pública pode parecer o menor dos problemas. Ainda que, em muitos casos, seja a atitude certa a se adotar, isso não vem sem seus devidos ônus.
Antes de mais nada, cumpre explicar o que são esses estados. Trata-se de ações extraordinárias do chefe do governo que podem suspender funções básicas e direitos individuais a fim de responder a uma ameaça à ordem ou à estabilidade de um país, estado ou município.
Apesar do conceito simples, as implicações são drásticas e dependem, como primeiro passo, da promulgação de decreto dando publicidade aos motivos da emergência ou calamidade pública. Um dos efeitos é a liberação de verbas, acima de metas fiscais vigentes, para ações emergenciais e preventivas.
População do Rio circula de máscaras no Centro do município em meio à pandemia do novo coronavírus Foto: Fabio Motta / Agência O Globo
População do Rio circula de máscaras no Centro do município em meio à pandemia do novo coronavírus Foto: Fabio Motta / Agência O Globo
E é aí que nasce o risco – ou seja, a probabilidade de algum desvio ocorrer, não sua certeza.
Nesse modelo emergencial, as contratações públicas ficam dispensadas de uma série de exigências, como concorrência de empresas e flexibilização dos preços, em prol da celeridade. Isto é, não se trata de medidas problemáticas em si, mas que, inevitavelmente, aumentam os riscos de má alocação de recursos, desvios e corrupção.
Se por um lado o gestor público tem mais liberdade para adotar de forma célere as medidas para frear uma crise, por outro, os controles mudam de configuração e se tornam um desafio à parte para ministérios públicos e tribunais de conta.
Por incrível que pareça, estados de emergência e calamidade pública são comuns no Brasil. Segundo dados da transparência do Ministério de Desenvolvimento Regional, entre 2015 e 2019, foram reconhecidos 12.215 decretos de Estado de Emergência em todo o Brasil. As causas mais comuns são secas, seguidos de enchentes e desastres naturais.
Ou seja, não se trata de situação excepcional, mas de recorrência assustadora e que tem origem, conforme conclusão da Confederação Nacional de Municípios e o Tribunal de Contas da União, na baixa eficiência e volume dos investimentos em prevenção. Em levantamento do TCU de 2016, o Programa de Gestão de Riscos e Resposta a Desastres para os anos de 2012-2015, que custou aos cofres públicos cerca de R$6,2 bi, registrou apenas 18% de obras concluídas ou em estado regular.
Dessa forma, é natural que, no ano seguinte, mais casos de emergência sejam registrados e, consequentemente, nova liberação de verbas excepcionais. É um sistema feito para ser corrompido.
O Brasil enfrenta uma emergência ainda maior para enfrentar a pandemia do coronavirus, sendo a tendência que todas as principais capitais e estados decretem estado de emergência, além do próprio governo federal.
Historicamente, o reconhecimento de emergência é garantido aos municípios com menor capacidade financeira; o que não deve acontecer agora, tendo em vista que o maior risco está, justamente, nos principais centros urbanos, onde há maior aglomeração de pessoas.
É o caso do São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Belo Horizonte, todos com emergência decretada e uma gama de medidas preventivas adotadas, como fechamento de bares, academias e shopping centers. O governo federal não dispõe de um painel em tempo real e disponível ao público de municípios nessa situação, o que pode gerar um risco sistêmico no gerenciamento de tantos casos assim.
No âmbito federal, desde 6 de fevereiro, com a entrada em vigor da Lei 13.979/20, está dispensada a licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde para essa finalidade. Adicionado a essa dispensa, o governo planeja a decretação do estado de calamidade pública, de modo a suspender a Lei de Responsabilidade Fiscal e admitir déficit de até R$124 bi. Além disso, uma Medida Provisória já foi implementada, liberando cerca de R$5 bi.
Com isso, todos esses riscos usuais de má-alocação de recursos e margem para discricionariedade se amplificam, seja por causa do montante financeiro envolvido, seja pelo volume de contratos a serem assinados, número de municípios e estados beneficiados ou até mesmo por conta da logística na entrega desses produtos e serviços.
Estando o foco voltado para questões mais urgentes e considerando as limitações que o tratamento de uma pandemia impõe, é imprescindível que se pense em alternativas para o controle social desses contratos. Nesse sentido, o uso da internet e de plataformas digitais são aliados para garantir o bom uso de recursos.
O Observatório Social do Brasil destaca a obrigação legal de todos os órgãos públicos e de todas as instâncias a disponibilizarem seus dados em portais de transparência, em tempo real, especialmente sobre a execução orçamentária e financeira, conforme a Lei de Acesso à Informação e Lei da Transparência. Ademais, retomam a pauta do uso dos pregões eletrônicos, mais seguro e transparente quanto às informações da celebração de um contrato público.
No âmbito da contenção do coronavirus, em cumprimento ao art. 4, § 2º da Lei 13.979/2020, que diz que essas informações serão “imediatamente disponibilizadas”, incluindo dados como prazo contratual, valor e o respectivo processo de contratação, o Ministério da Saúde disponibiliza um quadro com esses dados.
Com isso, já foi possível identificar um possível conflito de interesses na compra de aventais hospitalares, realizada por empresa que foi a segunda maior doadora da campanha eleitoral do hoje ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, conforme apurado pelo UOL.
Frente à necessidade de gastar para além da meta fiscal – fato que não se discute -, esse ambiente também abre brechas para desvios. Precisamos de transparência e controle social, a fim de evitar que esses recursos tão escassos ao Brasil sejam usurpados ou mal alocados quando os impactos podem ser ainda mais nefastos.
Para tanto, é imprescindível que o governo mantenha esse painel atualizado e que os órgãos do governo tenham meios eficientes para ter a mesma urgência no controle que se tem para concluir essas compras. Verificar, ano que vem, que houve abuso em meio à crise é muito tarde. O Brasil precisa ainda mais de probidade agora.
Carlos Henrique Barbosa é consultor em Compliance na Carneiros e Dipp Advogados, Mestre pela UniversityofSussex, Direito pela Universidade de Brasília