O horror da guerra pelas lentes de Jonathan Alpeyrie

O horror da guerra pelas lentes de Jonathan Alpeyrie

16 de maio de 2019
Última atualização: 16 de maio de 2019
Helio Gama Neto

ÉPOCA – 16/05/2019

Bruno Abbud

Fotógrafo franco-americano registrou conflitos armados pelo mundo até ser sequestrado na Síria. Libertado, está interessado nos tiroteios do Rio de Janeiro.

A primeira imagem que surge na mente de Jonathan Alpeyrie quando se lembra de sua terceira viagem à Síria, há seis anos, é a de um homem sorridente que deslizava as lâminas de duas facas de cozinha uma contra a outra enquanto o encarava em silêncio. “Era como se dissesse: ‘Sei exatamente como cortar uma cabeça’, lembrou Alpeyrie, agora sentado no lobby de um hotel com vista para o mar do Leblon, no Rio de Janeiro.

Em abril de 2013, o fotógrafo franco-americano passou 81 dias em cativeiro depois de ter sido sequestrado perto de Zabadani, a 45 quilômetros da capital, Damasco, enquanto registrava profissionalmente a guerra civil instalada no país desde 2011. No dia 29 daquele mês, ele, seus dois guias locais e dois soldados de forças rebeldes que se consideravam parte do Exército Livre da Síria (FSA, na sigla em inglês), todos num carro, deixaram Damasco. Levariam cerca de uma hora e meia até Zabadani, mas a viagem foi interrompida dez minutos depois de ter começado.

Àquela altura, a Síria assistia à proliferação de grupos rebeldes que se formavam contra o governo do ditador Bashar al-Assad, do partido Ba’ath, cuja família está no poder há 48 anos. Desde o fim de 2010, quando um vendedor de frutas de 26 anos, revoltado com a corrupção da polícia no interior da Tunísia, ateou fogo contra o próprio corpo e morreu, Al-Assad passou a conviver com a ideia de que o poder pode ser mais perecível do que parece. A morte do comerciante Mohamed Bouazizi despertou a Primavera Árabe, uma onda de protestos que atingiu dez países no Oriente Médio. Ele morreu em março de 2011. Três meses depois, a guerra na Síria começou.

Em oito anos, mais de 400 mil pessoas, a maior parte civis, morreram na guerra síria. Segundo o Observatório Sírio para os Direitos Humanos (SOHR, na sigla em inglês), aconteceram 312 mortes por tiro ou bomba em apenas três dias da semana passada.

Aos 40 anos, Alpeyrie cobriu mais de dez guerras em 35 países para veículos como CNN, BBC e Vanity Fair . Criado pelo pai metade russo, metade francês, e pela mãe, espanhola de Barcelona que vive no México, o fotógrafo diz ser fascinado por aventura. Nascido na França e morador de Nova York, cresceu com vontade de “vivenciar a História enquanto ela acontece”, nas palavras dele. Quis sentir, ouvir, cheirar e, sobretudo, ver os acontecimentos históricos. Encontrou na fotografia o caminho para isso. Mais do que a História, contudo, acabou experimentando o custo de vivenciá-la.

Naquele mês de abril de 2013, Alpeyrie passou uma semana fotografando os conflitos em Yabrud, a 80 quilômetros de Damasco. Soube que a cidade de Zabadani sofria com bombardeios diários promovidos por Bashar al-Assad. Pediu a um dos guias que o levasse até lá. Antes da viagem, pararam numa casa onde cerca de 20 rebeldes fumavam e bebiam café enquanto as bombas lançadas pelos aviões do governo faziam tudo estremecer. Um rebelde de alta patente prometeu levá-lo ao front de batalha. A promessa, no entanto, tornou-se armadilha. No meio do caminho, homens mascarados pararam a caminhonete em que viajavam. Alpeyrie foi rendido e levado para um cativeiro.

“Botaram todo mundo para fora do carro e me jogaram no chão”, contou. “Puxaram minha camiseta sobre a minha cabeça, de maneira que a gola ficou presa em meu nariz, e tomaram todo o meu equipamento de fotografia. Pensei que aquilo não passava de um mal-entendido e que tudo ficaria bem, até um deles sacar uma pistola e disparar um tiro bem do lado de meu ouvido. E então soube que havia um problema.”

Alpeyrie foi algemado, vendado e trancado em um quarto escuro. Os rebeldes bateram nele, pisaram sobre seu corpo e lhe quebraram duas costelas. “Eu tinha um copo, urinava dentro dele e às vezes bebia minha própria urina porque eu não podia sair dali”, lembrou. “Um deles era maluco, me levava para fora do cativeiro, tirava de mim as algemas e a venda e queria que eu lutasse com ele. Para mim era difícil, porque, se eu batesse muito forte, não saberia que reação teriam. Se parecesse fraco, seria desprezado. Tinha de encontrar um meio-termo.”

Nos interrogatórios, as perguntas eram quase sempre as mesmas: “Queriam saber se eu era judeu e se trabalhava para a CIA. Essas duas perguntas foram feitas muitas vezes, mais do que quaisquer outras”. Alpeyrie, contudo, percebeu que não morreria por aquelas mãos. “Eles queriam o dinheiro que eu significava para eles”, disse. “Quando você é sequestrado, torna-se um ativo financeiro. Você não é um ser humano.”

No segundo mês de cativeiro, as coisas mudaram. Alpeyrie foi transferido para uma casa mais ampla, podia circular pelo jardim e comer com os outros rebeldes. Aprendeu a falar poucas palavras em árabe, sua barba cresceu e ele passou a rezar com os algozes. Fez amigos. O homem que lhe quebrou as costelas hoje curte suas fotos no Facebook. Mas, à época, as bombas ainda caíam por perto, cada vez mais perto. Os rebeldes morriam um a um durante os confrontos. Alpeyrie ajudava os soldados a se vestir antes de irem à guerra. Eram cada vez menos numerosos e precisavam de dinheiro. Certo dia, Alpeyrie soube que os jihadistas da frente islâmica Al-Nusra desejavam comprá-lo. Algo que significaria sua morte.

Ao mesmo tempo, os contatos de Alpeyrie no Líbano, gente rica e poderosa que havia providenciado sua entrada na Síria, acionaram um xeque amigo que dispunha de um exército particular. Duzentos homens prontos para resgatar o fotógrafo transformado em refém. Enviaram espiões para localizá-lo perto de Zabadani. Armaram a emboscada. “Os homens estavam na fronteira, em carros, prontos para ir ao vilarejo e matar todos os rebeldes”, contou Alpeyrie. “A operação não aconteceu porque, um dia antes, um homem pagou o meu resgate.” Tratava-se de um empresário sírio interessado em conquistar a simpatia do governo americano.

“Havia um acordo entre países da União Europeia e os Estados Unidos para criar um obstáculo para o regime de Bashar al-Assad. Qualquer pessoa próxima ao governo sírio não tinha permissão para viajar para fora da Síria, e todo o dinheiro dessas pessoas fora do país havia sido congelado”, disse Alpeyrie. “A única razão para ele ter pago meu resgate foi para ser removido dessa lista negra que não permitia a ele que viajasse para fora da Síria nem que usasse sua conta bancária estrangeira.” Seguiu-se então uma operação secreta para transportar o fotógrafo até o Líbano, de lá para a França e da França para Nova York. Algo digno de cinema. A história de Alpeyrie está sendo filmada em Hollywood, adaptada a partir do livro The shattered lens: a war photographer’s true story of captivity and survival in Syria , que publicou em 2017.

De refém, Alpeyrie tornou-se famoso. Não parou de frequentar o epicentro de conflitos perigosos. A última investida acontece em terras tupiniquins. Ele chegou ao Brasil pela primeira vez há cerca de uma semana, interessado em fotografar as mulheres envolvidas com o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Hospedou-se em uma favela. “Houve um tiroteio nesta manhã, eu ouvi os tiros”, disse o fotógrafo, no lobby do hotel. Ele aguarda uma autorização do governo estadual para acompanhar as incursões da polícia em áreas de confronto da capital fluminense.


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Helio Gama Neto