O dilema das fake news

O dilema das fake news

29 de julho de 2020
Última atualização: 29 de julho de 2020
Helio Gama Neto

O GLOBO – 29/07/2020

Gustavo Binenbojm

Dilema é uma situação que nos impõe uma escolha trágica: perde-se necessariamente alguma coisa valiosa de um lado, para ganhar algo importante de outro. Não escolher configura uma escolha ainda pior. A discussão sobre fake news tem sido vista como um dilema entre o combate às campanhas de desinformação em massa e a preservação da liberdade de expressão. A aprovação do projeto de lei sobre liberdade, responsabilidade e transparência na internet pelo Senado Federal (PL 2.630/2020) parece provar que o dilema é superável.

Fake news são mensagens falsas, criadas por meios fraudulentos, com o objetivo de causar danos a pessoas ou instituições. À falta de tradução mais adequada, prefiro chamá-las de notícias fraudulentas, já que a falsidade é apenas um de seus elementos. O uso de perfis e contas falsas, mecanismos de inteligência artificial e robôs que impulsionam maciçamente mentiras deletérias deu escala e relevância ao fenômeno, capaz de comprometer a lisura das escolhas individuais e coletivas.

As fake news podem constituir atos ilícitos de natureza civil, penal e até eleitoral. O Estado deve assegurar o pagamento de indenizações às vítimas, a punição dos criminosos e até a invalidação de processos de deliberação coletiva viciados por esse tipo de fraude. Mas isso não basta. Como a poluição ambiental, as notícias fraudulentas devem também ser entendidas como uma espécie de falha de mercado que causa prejuízos para toda a sociedade. O PL 2.630/2020 acerta mais do que erra nos mecanismos para seu enfrentamento, sem descambar para o mal oposto — e mais grave —, que seria a restauração da censura em versão digital.

O PL abdica de adotar uma definição específica de desinformação, excluída de seu texto original, evitando uma problemática discussão sobre conteúdo. O foco está na garantia da integridade dos sistemas informacionais e da pluralidade da esfera pública, bem como em deveres de transparência, informação e devido processo legal. Estado e provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada devem promover esses valores, numa espécie de corregulação. A responsabilidade compartilhada entre os setores público e privado abre caminho para a autorregulação regulada: o Estado definirá os parâmetros gerais na lei e em códigos de conduta; as empresas digitais lhes darão concretude em normas privadas de boas práticas.

O PL exige que provedores impeçam o funcionamento de contas inautênticas e de contas automatizadas não identificadas como tal, além de obrigá-los a identificar todos os conteúdos impulsionados e publicitários cuja distribuição tenha sido realizada mediante pagamento. Prevê-se também que as redes sociais divulguem relatórios trimestrais contendo informações quantitativas sobre o tratamento de conteúdos gerados por terceiros de maneira transparente.

Quanto aos procedimentos de moderação, o PL promove uma salutar processualização da relação entre provedores e usuários, assegurando o direito ao contraditório e a recursos contra a retirada de conteúdos. Para impedir o uso inadequado por meio do anonimato, vedado constitucionalmente, os provedores poderão exigir que os usuários confirmem a sua identificação, inclusive mediante apresentação da identidade. Os serviços de mensageria deverão adotar mecanismos tecnológicos que assegurem a preservação de sua natureza interpessoal, limitando o encaminhamento em massa de mensagens. Por fim, agentes públicos não poderão impedir o acesso de terceiros a suas contas oficiais nas redes sociais, como forma de garantir pluralidade no debate público, norma já imposta pelo Judiciário americano ao presidente Trump.

Entre lavar as mãos e se omitir diante de um fenômeno que oferece riscos tão relevantes à democracia, o Senado Federal enfrentou a discussão das fake news de maneira corajosa e equilibrada. A bola agora está com a Câmara dos Deputados. Qualquer erro na dose pode transformar o remédio em veneno ou torná-lo ineficaz. Estamos de olho.


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Helio Gama Neto