Morto nesta semana, fotógrafo Bruno Barbey preparava livro e exposição sobre o Brasil. Veja imagens

Morto nesta semana, fotógrafo Bruno Barbey preparava livro e exposição sobre o Brasil. Veja imagens

12 de novembro de 2020
Última atualização: 12 de novembro de 2020
Helio Gama Neto

O GLOBO

Ana Cecilia Impellizieri Martins e Cristianne Rodrigues, especial para O GLOBO *

PARIS – Bruno Barbey era um jovem esguio e intranquilo, recém ingresso na prestigiada agência Magnum, criada por Henri Cartier-Bresson, quando viu eclodir em Paris uma insurreição liderada por estudantes. Simpatizante do movimento dessa juventude da qual ele mesmo fazia parte, passou dias e noites registrando cenas que se transformariam em ícones daquele lendário maio de 1968: o estudante lançando um paralelepípedo contra a polícia, barricadas incendiando as ruas madrugada adentro, um atônito casal parisiense em peignoir e pantufas conferindo a destruição na manhã seguinte. Do Quartier Latin para o mundo, suas imagens atravessaram o tempo.

Cinquenta anos depois, Barbey olhava suas fotos de 1968 com o mesmo entusiasmo e ainda alguma perplexidade. Então septuagenário, lembrava os momentos de aflição e violência, mas também de uma inesperada comunhão: “O que me fascinava, desde o início, era a necessidade que todos sentiam de se falar. Havia uma mistura social rara, uma necessidade de discutir, de reinventar o mundo, um desejo de liberdade, uma explosão.”

Até 2018, o fotógrafo não sabia que o Rio de Janeiro, cidade que descobrira em 1966, tinha sido palco de aguerridas manifestações estudantis naquele mesmo ano de 68, porém em outro contexto — sob uma implacável ditadura militar, e sendo violentamente reprimidas — e se surpreendeu com registros análogos dos brasileiros Pedro de Moraes e Evandro Teixeira.”Mas não é Paris, perguntava surpreso, durante um encontro para a edição do livro “1968: Paris, Rio”, em sua casa em Vincennes, às portas da capital francesa.

O Brasil que conheceu não era, definitivamente, o dos conflitos. Em 1966, enviado pela revista “Vogue”, Barbey navegou pelo Rio Amazonas de Belém até Leticia, na fronteira colombiana, para registrar o cotidiano de populações ribeirinhas, e acabou ficando por três meses. Ele estava apaixonado pelo Brasil e não demoraria a voltar, em 1973, dessa vez assentando no Rio, onde captou a festa de Iemanjá, desfiles e bailes de carnaval para a revista “Manchete”, embrenhando-se em seguida pela Floresta Amazônica para documentar a abertura de estradas para a revista do “Sunday Times”, passando pela Bahia e por Brasília. Voltaria ainda nos anos 1980 e no começo dos anos 2000, repetindo as escalas no Rio e no Norte do país. Diante das imagens brasileiras, vistas recentemente para um novo projeto, comentava afetuosamente: “Foi no Brasil que descobri a cor…”.

A partir daí, com as cores captadas em lendários filmes Kodachrome, voltaria ao front. Barbey cobriu alguns do mais importantes eventos da segunda metade do século XX, como a Guerra do Vietnã, a Guerra Civil da Nigéria, a Guerra do Yom Kipur, a Revolução Cultural na China, o movimento de resistência liderado pelo sindicato polonês Solidariedade, a Guerra do Golfo. Suas imagens correram o mundo estampadas em revistas como “Life”, “Newsweek”, “Paris Match”. Ao lado de Cartier-Bresson, Marc Riboud, Guy Le Querrec, Martine Franck, Abbas e Josef Koudelka, ajudou a desenhar o que ficou conhecido como a era de ouro do fotojornalismo. A maior parte desses fotógrafos se manteria associada à Magnum Photos, agência que Barbey chegou a presidir.

— Em 1981, quando o conheci, ele era uma figura importante na Magnum, tinha sido vice-presidente da agência na Europa, e eu não conhecia ninguém no meio fotográfico. Eu estava voltando do Quênia, onde tinha passado dois anos estudando o comportamento dos leões na Tanzânia. Barbey viu minhas fotos e me apresentou ao diretor da revista “Geo” na Magnum. Estava quase mais entusiasmado do que eu. Minhas fotos foram publicadas, e foi assim que a minha carreira começou, graças à generosidade e ao entusiasmo dele, uma marca de sua personalidade — contou Yann Arthus-Bertrand, ao telefone, na terça-feira.

Sentimento humano genuíno x cinismo comercial e indiferença
Nos últimos tempos, Barbey costumava marcar seus encontros no Café des Beaux-Arts, às margens do Rio Sena, ao lado da Academia de Belas Artes da França, onde ingressou em 2016. Um reconhecimento máximo em uma instituição fundada no início do século XIX, antes mesmo da invenção da fotografia. Entre seus parceiros “acadêmicos” estão, além de Arthus-Bertrand, os também fotógrafos Jean Gaumy e Sebastião Salgado. Não à toa Barbey fazia parte desse panteão das artes francesas: franco-suíço nascido no Marrocos, fascinado pela diversidade e pela beleza do mundo, mas também preocupado com seu destino, costumava citar Cornell Capa, que dizia: “O fotógrafo realmente comprometido produz imagens nas quais o sentimento humano genuíno prevalece sobre o cinismo comercial e a indiferença.”

Em mais de 50 anos de carreira, Barbey publicou cerca de 30 livros, entre trabalhos autorais, produzidos a partir de viagens pela Ásia e África, e edições realizadas com escritores, como o prêmio Nobel J. M. Le Clézio e Jean Genet. Em 2018, lançou a edição bilíngue de “1968: Paris, Rio”, com fotos dele e de Pedro de Moraes. Ano passado lançaria sua última publicação, “Color of China”, com imagens captadas nas muitas viagens ao país. Em Paris, frequentava o movimentado meio fotográfico. Este ano, antes do confinamento em razão da Covid-19, esteve em eventos e vernissages e publicou imagens feitas no período de reclusão. Foi, portanto, com surpresa que chegou a notícia de sua morte, na segunda-feira, aos 79 anos, vítima de um enfarte.

Para Barbey, o Brasil não era apenas uma memória idílica. Em 2015, esteve no Rio para a abertura da exposição coletiva “Rio, uma paixão francesa”, no MAR. Planejava uma mostra individual na cidade e um livro reunindo as imagens feitas no país. Já tinha nome: “Brasil — A descoberta da cor”. Um álbum de memórias e afetos para que o país que o fez descobrir a cor descobrisse também a grande parcela de imagens que o fotógrafo lhe dedicou. Um projeto que seguirá.

Em meio a uma obra marcada pelas adversidades das guerras e dos conflitos do homem, Bruno Barbey guardou para o Brasil seus registros mais sutis e poéticos: a simplicidade do cotidiano do trabalho e do lazer, a brincadeira das crianças, a festa e a fé, a exuberância da natureza. É esse o Brasil que Barbey viu e gravou, entre o efêmero e a permanência — essa arte singular que é a expressão do que de melhor a fotografia nos dá.

*Ana Cecilia Impellizieri Martins e Cristianne Rodrigues são organizadoras do livro “1968: Paris, Rio” e do projeto “Brasil: a descoberta da cor”. Cristianne Rodrigues foi uma das curadoras da exposição “Rio, uma paixão francesa”


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Helio Gama Neto