Jornalismo de confirmação: o perigo de fazer o título antes da apuração
ORBIS MEDIA REVIEW – 12/06/2020
ANA BRAMBILLA
Certo dia uma jornalista experiente e editora num grande veículo nacional, fez o seguinte comentário durante uma aula sobre redação digital: “A primeira coisa que eu escrevo, em uma matéria, é o título”. A fala seguia com uma justificativa impositiva de que aquele era o seu estilo e, por essa razão, o método seria válido.
Estilo costuma ser, de fato, um traço pessoal que alguém imprime sobre seu trabalho e o diferencia de qualquer outro autor. Para o jornalista, estilo é parte da identidade individual, motivo de orgulho. Até aí, zero problema. O difícil é quando este “estilo” esvazia a razão de o jornalismo existir.
A aluna seguiu o comentário revelando que, após escrever o título, ela “via com mais clareza aquilo que ela realmente queria“. Só então começava a apurar o assunto. Num momento ponderou, jogando a mão repetidamente pro lado, num gesto de desdém: “Quando alguma investigação aponta algo diferente às vezes eu até mexo um pouquinho no título, mas o importante é eu saber qual será a minha tese”.
Destaco a palavra tese porque aí reside um perigo ainda maior do que escrever o título antes de fazer a apuração. Tese é uma expressão que se costuma usar na academia, associada à prática da ciência ou à busca contínua pela verdade. Sei que este discurso soa modernista demais para seguir em uso na pós-modernidade. O fato é que a estrutura da pesquisa científica ainda é feita do confronto entre tese e antítese, que darão origem à síntese.
Quando uma tese nasce, ela vem com a verificação de hipóteses, ou seja, a análise. É certo que o jornalista observe a realidade e conte para o público. Mas da observação à análise há uma diferença abismal que escorrega na armadilha do enviesamento, ou seja, de um jornalismo pretensamente imparcial mas atravessado por simpatias a antipatias, por interesses próprios, pela militância fora de lugar.
Não sejamos ingênuos: imparcialidade não existe, objetividade é uma utopia etc, etc. Sabemos, no entanto, que um jornalismo honesto se faz a partir de, pelo menos, um esforço de relatar a realidade com o máximo de fidelidade aos acontecimentos. E isto é possível quando o autor ou o veículo explicitam seu lugar de fala. Quando não existe posicionamento claro, então estamos diante de uma armadilha ao público, de um desserviço à sociedade.
Já vi repórteres de TV escreverem o texto da passagem no carro da empresa, no caminho de ida ao local da pauta. Pergunto: para que serve mesmo apurar, investigar?
Mesmo que esta jornalista não aplicasse seu método de criar teses antes da apuração ao breaking news e o deixasse apenas para grandes reportagens, o perigo do anti-jornalismo seguiria presente. Quem faz análise é o analista. Quem constrói teses é quem encontra elementos para observar um fenômeno desde um referencial teórico aplicado a uma amostragem real. Portanto, tese é ponto de vista.
Tese é território de posicionamento. E não há forma legítima de uma tese se aplicar ao jornalismo. Tratar jornalismo como tese é uma afronta a quem for consumir aquele produto, é a subestimação da capacidade de raciocínio da população. Além disso, é um extraordinário indício de preguiça profissional.
Fazer uma tese pensando que está fazendo jornalismo indica que o jornalista não fez nem mesmo um mínimo esforço em se expor à realidade de forma desarmada, permitindo que os fatos falem por si e conduzam a apuração de modo orgânico, não guiados por seus desejos.
Lamentavelmente, este comportamento não é exclusividade daquela editora que mencionei no começo deste artigo. Já vi repórteres de TV escreverem o texto da passagem no carro da empresa, no caminho de ida ao local da pauta. Pergunto: para que serve mesmo apurar, investigar?
Se a fonte não deu exatamente aquela declaração que o jornalista buscava, então ela ‘não serve’.
Até mesmo o colunista, o analista da realidade sustenta suas teses em argumentos concretos e fatos, pesquisas, declarações. Que autoridade tem o jornalista para criar uma tese antes de se encontrar com a realidade, antes de ouvir as fontes, de conversar com pessoas, de ver um fato com seus próprios olhos e depois vendê-la às audiências como o sumo da verdade?
Não é raro encontrar repórter que busque fonte ou personagem com perfis extremamente precisos, que apenas confirmem a história que ele quer contar. Se a fonte não deu exatamente aquela declaração que o jornalista buscava, então ela não serve e se parte na busca de outra, e outra, e outra pessoa que apenas valide a tese formulada na redação.
Assim como no método científico, a graça do jornalismo está na descoberta! Deixe a realidade falar e coloque-se à serviço dela. Não tente condicioná-la aos seus pré-conceitos. Faça jornalismo, não defenda teses.