Jornalismo construtivo: a esperança de uma narrativa transformadora
ORBIS MEDIA REVIEW – 18/03/2021
ALFREDO CASARES
O jornalismo não nos ajuda, somente, a construir uma imagem do mundo em que vivemos. Ele também permite que formemos uma imagem a respeito de nós mesmos em sociedade: se nos vemos como meros espectadores ou como atores capazes de mudar a realidade. Para desenhar estas duas possibilidades com precisão, necessitamos ter uma visão completa, equilibrada e fiel do mundo, que inclua a descrição dos problemas e suas consequências, mas também um relato rigoroso e ético a respeito das iniciativas em andamento para solucioná-los. O jornalismo pode se esforçar na busca por estas soluções e torná-las visíveis; pode verificar os resultados obtidos e extrair aprendizados valiosos que inspirem outras pessoas, projetem vínculos entre elas e favoreçam a escuta paciente em uma conversação social. Este é o propósito do jornalismo construtivo.
Faz um ano que nós, jornalistas, nos vimos atacados de forma repentina por uma pandemia convertida em uma avalanche de números de mortos e infectados. Os veículos assumiram uma linguagem científica e bélica que reforçou a desumanização da narrativa, transformada em uma espécie de placar esportivo atualizado diariamente com novos dígitos. Além disso, as redações se depararam com uma demanda histórica por informação.
Os veículos estão tomados por uma inclinação cultural ao medo e ao conflito; eles não aceitam a culpa que isso lhes traz, ao entenderem que o extraordinário tenha que ser, necessariamente, o negativo.
Foi preciso que algumas semanas se passassem para que os veículos encontrassem o sossego e o tempo necessários para assumir outra perspectiva e enfocar-se na solidariedade de quem cuidava de seus vizinhos, na cooperação entre empresas e organizações, nos aprendizados de como se administrava a pandemia noutros países ou na fortaleza que tantas pessoas, com nome e sobrenome, mostravam. Hoje deveríamos olhar para estas histórias não como conquistas pontuais, úteis para colorir um relato sinistro, mas como comportamentos sociais reais, que precisam ser contados e replicados.
Os chamados “possibilistas sérios”, como Hans Rosling ou Steven Pinker, defendem com dados que nunca houve menos pobreza no mundo, menos fome ou analfabetismo do que na atualidade, ainda que nós, jornalistas, façamos os cidadãos pensar o contrário. Os veículos estão tomados por uma inclinação cultural ao medo e ao conflito; eles não aceitam a culpa que isso lhes traz, ao entenderem que o extraordinário tenha que ser, necessariamente, o negativo.
Diante do medo paralisante e depressivo, a sociedade necessita de esperança. Não me refiro a uma esperança sedativa, que adoce a realidade, mas uma esperança sustentada por fatos, dados, que mostre, inspire e incentive uma mudança possível.
Ao mesmo tempo, estudos em vários países mostram que os cidadãos querem que os veículos lhes contem o que funciona bem na sociedade e valorizam as propostas editoriais que incluem soluções aos desafios do futuro: as pessoas passam mais tempo nesse tipo de notícia, se sentem melhor informadas, mais interessadas nas pautas, querem ler mais artigos escritos pelo mesmo autor, compartilham mais estes conteúdos e se sentem melhor.
Tudo isso acontece no momento em que uma corrente se espalha por todo o mundo, a favor de um jornalismo mais construtivo e orientado a soluções. Há iniciativas nos Estados Unidos, Argentina, Índia, Nigéria e em países europeus como Reino Unido e Dinamarca. Na Espanha, fundei o Instituto de Periodismo Constructivo, onde acompanhamos jornalistas, diretores de veículos e empresas de comunicação para refletir sobre o propósito de seu trabalho, sobre encontrar formas de contar o mundo de uma maneira mais equilibrada e, com isso, desenvolver projetos com potencial transformador nas comunidades a que servem.
Assumamos que o jornalismo investigativo e a denúncia não são as únicas formas de sermos valiosos para a sociedade; que possamos ser críticos e construtivos ao mesmo tempo.
Este auge não parece casual. Em momentos históricos, como este que vivemos, a proeminência do jornalismo se torna mais necessária, assim como o equilíbrio dos relatos. Diante do medo paralisante e depressivo, a sociedade necessita de esperança. Não me refiro a uma esperança sedativa, que adoce a realidade, mas uma esperança sustentada por fatos, dados, que mostre, inspire e incentive uma mudança possível.
Olhares complementares à sociedade
É preciso que duas formas complementares de ver a sociedade e de contar o mundo convivam em paralelo: uma delas é mais focada na denúncia de abusos, na busca por culpados ou no controle dos poderes; a outra é dedicada a explorar iniciativas promissoras que apresentam soluções de futuro – que estas iniciativas tenham a visibilidade que merecem e, assim, possam ajudar os cidadãos a envolverem-se na ação social. A combinação de ambos olhares pode ser uma bússola poderosa no caminho de tentar recuperar a confiança da população.
Nas conversas que tenho tido nos últimos meses com jornalistas, diretores de veículos e professores universitários da Espanha e dos Estados Unidos, a respeito do jornalismo construtivo, percebi que ainda existe um caminho a ser percorrido. Necessitamos explicar bem o valor desta perspectiva, apresentar exemplos claros e realizar estudos que certifiquem o efeito deste modelo de jornalismo no público. Já existem algumas iniciativas nestes países, em veículos nacionais, jornais regionais e em publicações independentes, que nasceram nos últimos anos. No médio prazo, o passo seguinte será incorporar o jornalismo construtivo à sua estratégia editorial.
Não faria mais sentido encontrar a função que a sociedade demanda de nós para, só depois, ver a maneira de transformar isso em uma atividade sustentável?
Para iniciar este trânsito, proponho incluir o jornalismo construtivo nas nossas conversas sobre o futuro do setor. Sugiro que revisemos o papel dos veículos como porta-vozes do ódio e do medo que as manifestações de alguns políticos destilam; que desvelemos o preconceito de que as informações promissoras sempre são pouco críticas ou suspeitas de terem caráter de marketing. Que assumamos que o jornalismo investigativo e a denúncia não são as únicas formas de sermos valiosos para a sociedade; que possamos ser críticos e construtivos ao mesmo tempo.
Tenho a impressão de que estamos agarrados à busca por um modelo de negócio que nos permita manter as empresas tal como elas nasceram e fazer nosso trabalho como fizemos até agora. Talvez tenhamos que nos propor o seguinte: não faria mais sentido percorrer o caminho inverso, ou seja, primeiro encontrar qual é a função que a sociedade demanda de nós para, só depois, ver a maneira de transformar isso em uma atividade sustentável?
Os problemas do jornalismo não são apenas econômicos, de credibilidade ou confiança. O jornalismo sofre de uma profunda crise de proeminência. Temos a oportunidade de formar uma nova relevância coletiva baseada na cooperação, de desempenhar um papel importante, chancelado por nossa capacidade de subir na varanda da sociedade, de onde se contempla a realidade com uma perspectiva enorme, e descer à rua para arregaçar as mangas, misturar-nos com nossos vizinhos, estar à altura deles, entender a complexidade de integrar a diversidade e acompanhá-los em uma construção social permanente. Nós, jornalistas, podemos escolher se atuamos como meros observadores do sistema ou como agentes da mudança em uma sociedade madura e informada, na qual todos somos necessários.