JOHN STUART MILL PARA OS TEMPOS DIGITAIS

JOHN STUART MILL PARA OS TEMPOS DIGITAIS

22 de agosto de 2019
Última atualização: 22 de agosto de 2019
Helio Gama Neto

ÉPOCA – 22/08/2019

Helio Gurovitz

Nunca tantos foram tão livres. Mas nunca tantos se sentiram tão vigiados, tão pouco livres.

A internet tornou a informação mais acessível e forneceu a qualquer um meios para publicar o que bem entender. Em nenhuma outra época da história humana tantos puderam emitir, compartilhar e discutir livremente tantas opiniões, ideias, desejos, relatos e realizar toda sorte de expressão por meio de textos, fotos, áudios, vídeos ou tecnologias que os filósofos do Iluminismo mal poderiam vislumbrar. Mas a transformação que a liberdade digital imprimiu às relações sociais teve consequências nefastas em diversos campos: da ciência climática às vacinas, da invasão de privacidade à manipulação pela propaganda e pelas notícias falsas, do novo nacionalismo à direita ao velho populismo à esquerda. Uma consequência imprevista é o clima de vigilância e exposição indesejada, “trollagem” e linchamento digital, que frustra a principal expectativa da liberdade. Por temor de que palavras, imagens ou gravações tenham consequências imprevisíveis, ninguém se sente à vontade para dizer com sinceridade o que pensa ou sente.

Tal paradoxo define a Era da Informação. “Sinto medo. Como muitos, sinto medo de dizer exatamente o que penso. Sinto medo de contribuir ao debate público com franqueza total. Sinto mais medo de aliados que de opositores, pois estes últimos podem me causar menos dano.” São essas as primeiras linhas escritas pelo filósofo australiano Russell Blackford em The tyranny of opinion ( A tirania da opinião ), obra em que discute o conceito iluminista de “liberdade de expressão” à luz das novas tecnologias e da perseguição a vozes dissonantes dentro e fora das redes sociais. Seu livro é uma versão atualizada para os tempos digitais do clássico Sobre a liberdade, de John Stuart Mill (tema desta coluna dois anos atrás). Só que, enquanto Mill se preocupava com o risco trazido à liberdade pela tirania de governos, Blackford concentra sua análise noutro tipo de censura: “Até mais perigosa, talvez, e certamente mais difícil de entender e refrear, é uma tirania menos aberta, mais insidiosa, aquela que Mill chamava ‘tirania da opinião e do sentimento predominantes’”.

Depois de proclamar a atualidade das ideias de Mill — e também de expor o que elas foram incapazes de prever —, Blackford esmiúça dezenas de casos contemporâneos em que a conformidade com a opinião coletiva cerceia a liberdade individual. Não se trata de prática exclusiva de trogloditas da extrema-direita. Ao contrário, ele descreve as ameaças vindas de seu lado do espectro ideológico, a esquerda. Cientistas perseguidos por promover linhas de pesquisa que contrariam ortodoxias acadêmicas. Professores universitários obrigados a se demitir por emitir opiniões que alunos consideram “politicamente incorretas”. Convidados excluídos de debates por ter visões dissonantes da esperada, às vezes em campos sem relação com o tema em discussão. Veículos de informação forçados a tirar do ar resenhas que desagradaram militantes de causas identificadas com minorias. E, enfim, casos trágicos, como a tibieza pusilânime com que diversos intelectuais reagiram à fatwa contra o escritor britânico Salman Rushdie (que resultou em ataques a editores e na morte de um tradutor) ou aos terroristas que mataram 12 pessoas na redação do semanário francês Charlie Hebdo em 2015.

Blackford não traz respostas prontas aos problemas, embora os discuta em profundidade. Critica o anonimato digital, defende restrições a certos “discursos de ódio” (como racismo ou nazismo), mas acredita que devem ser mínimas: “Quanto mais tentamos alargar a faixa do que é considerado intolerável, menos liberais nos tornamos, mais nos parecemos com autoritários ranzinzas e menos com os herdeiros genuínos do Iluminismo e de John Stuart Mill”. Ninguém, diz ele, deve pedir desculpas ou mudar a própria opinião diante do assédio nas redes sociais. “Se houver mais honestos entre nós, a honestidade pode se tornar uma opção mais segura para a maioria.”

THE TYRANNY OF OPINION
Russell Blackford, Bloomsbury Academic
2018 | 240 páginas | US$ 27


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Helio Gama Neto