Foto de pai e filha mortos é quadro do mundo de hoje
ÉPOCA – 27/06/2019
Luiz Fernando Vianna
O braço direito da menina sobre a nuca do pai, a blusa dele servindo de mortalha para ambos, é o que arrasta nossos olhares, nossas angústias e culpas. Sabemos que morreram assim porque Óscar Alberto Martínez Ramírez pusera Valeria em seu cangote para impedir que ela submergisse. As correntes do Rio Grande, que divide os Estados Unidos do México, foram mais fortes. Mas não o suficiente para separá-los.
A cena, de intensidade atemporal, permite livres ilações, como a de que a menina de 1 ano e 11 meses está consolando o pai, um jovem de 25 que queria dar a ela uma vida melhor, longe das gangues e da pobreza da periferia de San Salvador, capital de El Salvador.
É uma divagação piegas, talvez oportunista? Pode ser, mas como passar a vista na foto feita pela repórter Julia Le Duc, sentir indignação e tristeza e logo partir para a próxima imagem a ser curtida no Instagram ou no Facebook? A foto gruda nos olhos e na mente.
As cabeças dos dois estão encostadas num barranco que, como alegoria, representa o obstáculo que não conseguiram vencer rumo ao Texas. Do lado esquerdo deles, quatro latas de um azul vibrante, símbolos do capitalismo sedutor. Jogadas vazias onde não deveriam estar, mostram como essa sedução é efêmera e descartável, também descartando os que a perseguem. É, ainda, um pequenino retrato das agressões à natureza que, agigantadas na forma do aquecimento global, elevam a miséria, as migrações e as mortes.
Do lado direito, estão a mancha escura produzida pela sombra de um barco de madeira, pequeno e precário, e o que deve ser o reflexo do sol. Formam uma espécie de tela impressionista às avessas, barrenta e sem vida.
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Para concluir o amargo passeio pelo quadro, volta-se a pai e filha. Ela, de fralda e tênis, com uma candura que perdurará enquanto essa foto for vista – assim como a inocência do menino sírio Aylan Kurdi, que parecia dormir num berço quando foi encontrado sem vida numa praia da Turquia, em 2015, também vítima de uma viagem de família rumo a um futuro diferente, na Europa. Os pés de Óscar, levemente fora d’água, parecem ainda bater, impulsionar.
E pai e filha estão de bruços. Não é possível ver seus rostos. Num recato involuntário, poupam-nos de imagem mais terrível. Assim, perdem um tanto de suas individualidades. São mais dois a morrer nessa busca insana pelo “sonho americano”.
Fora do quadro, mas completando a história, está Tania Vanessa Ávalos, de 21 anos, mãe de Valeria, mulher de Óscar. Ele tentava buscá-la na margem do Rio Grande (Rio Bravo para os mexicanos) quando viu a filha, que estava do lado texano, cair na água. Decidido a salvar uma, distanciou-se da outra. Tania sobreviveu, mas carregará dor e culpa.
Supostamente indignado com a foto, o presidente Donald Trump afirmou: “Eu a odeio”. Odiar é algo que ele faz bem. Odiar, especialmente, os que tentam entrar no país que considera pertencer aos americanos – que são, em grande parte, descendentes de imigrantes: italianos, irlandeses, cubanos fugidos da revolução de Fidel, judeus de todo o mundo.
O republicano culpa os democratas por resistirem ao que ele acredita ser o melhor antídoto contra a imigração desenfreada: endurecer mais a legislação, autorizar a construção de um muro, acelerar sanções comerciais ao México, fazer deportações em massa. São fórmulas obscurantistas que não detêm o desespero.
Segundo a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), 41,6% da população de El Salvador vive na faixa da pobreza. Há cerca de 1,2 milhão de salvadorenhos morando nos EUA. O dinheiro enviado por imigrantes corresponde a 17,1% do Produto Interno Bruto do país centro-americano. Entre outubro de 2017 e junho de 2018, 8.462 famílias salvadorenhas (com 3.279 crianças) foram barradas na fronteira.
De outubro de 2017 a setembro de 2018, 283 pessoas morreram tentando passar do México para os EUA. E o número deve ser bem maior, porque muitos sucumbem antes de chegar à fronteira.
Reportagem do The New York Times publicada nesta semana mostrou que no posto de Clint, no Texas, crianças passam fome, não têm direito a higiene, vivem em celas e, em diversos casos, separadas de seus pais. É um campo de concentração. E o de Clint é apenas um.
É curiosa a globalização: não há fronteiras para o dinheiro, os negócios, mas há para os humanos. Grandes empresas se valem de mão de obra barata de países pobres – ou nos quais um enorme contingente da população é pobre – e conseguem com isso baixar os preços de seus produtos. Despejam o lixo industrial na África, contaminando e matando gente já miserável. Quando o assunto é fluxo de gente, porém, costumam ser mais cautelosas. Parte até apoia o nacionalismo de Trump.
As mortes de Óscar e Valeria são uma ode à intolerância. Do presidente americano, mas não só. Em todos os continentes, inclusive na América do Sul, há líderes que odeiam e perseguem todos os que não enxergam como iguais – estes e só estes são, para eles, o “povo”. Destroem ideias que dão sentido à história do próprio país que dizem amar.
Nos últimos anos, a Estátua da Liberdade, que já representou esperança para os estrangeiros que se aproximavam de Nova York, foi posta de joelhos. Após a foto de pai e filha salvadorenhos mortos, está de bruços. A despeito da comoção provocada pela imagem, é difícil apostar que alguma grande mudança virá.