Em defesa das selfies: como elas podem tornar as redes sociais menos anti-sociais

Em defesa das selfies: como elas podem tornar as redes sociais menos anti-sociais

13 de maio de 2019
Última atualização: 13 de maio de 2019
Helio Gama Neto

ÉPOCA – 11/05/2019

Daniel Salgado

Em novo livro, pesquisador americano fala sobre a transformação que a fotografia digital trouxe para a linguagem e porque devemos parar de estigmatizar quem adora ficar conectado.

É bem capaz que você já tenha se deparado com alguém criticando as pessoas que adoram tirar selfies. “Vazios”, “desconectados com a realidade” e “narcisistas”, são das descrições mais comuns nesses casos. E há quem reclame dos que fotografam shows – “não aproveitam nada!” – ou perdem horas tirando fotografias de um ponto turístico para postar nas redes sociais – “eu, hein! vai aproveitar a cidade”. Nada disso é verdade. Ao menos para Nathan Jurgenson, autor do livro “The Social Photo”, lançado neste mês nos Estados Unidos.

Nele, o sociólogo e teórico das mídias sociais faz uma defesa do poder transformativo da fotografia digital, que teria fundado uma nova maneira de nos comunicarmos, e fala sobre como as distinções entre o online e o offline — o que ele chama de ‘dualismo digital’ — só servem para estigmatizar mudanças incontornáveis da nossa sociedade contemporânea. Jurgenson escreve sobre como devemos parar de temer as selfies e passar a amá-las… Ok, talvez não tanto. Mas, segundo ele, estamos na era da “Foto Social” e ela diz muito sobre quem somos e para onde vamos.

Esses são temas caros a Jurgenson, que é criador e editor-chefe da revista Real Life e da conferência Theorizing The Web , dois dos espaços mais importantes e influentes nos Estados Unidos para discutir o aspecto humano da vida digital e não apenas quantos trilhões de dólares cada startup pode valer na Bolsa de Valores. À ÉPOCA, Jurgenson, que também é editor emérito do New Inquiry e pesquisador na Snap Inc, falou sobre a dimensão humana das fotografias de internet, os falsos compromissos das grandes empresas de tecnologia com o bem-estar de seus clientes e, não menos importante, sobre como as redes sociais foram desenhadas para metrificar as nossas vidas.

Seu livro se chama “A Foto Social”, que seria uma nova experiência fotográfica. Você pode explicar resumidamente do que se trata essa nova fotografia?

A maneira mais rápida é pensar nas fotografias dentro das redes sociais. Mas não é bem isso. Estou falando de uma prática, uma maneira de pensar, de ser e de falar. E penso na “Foto Social” não como a fotografia tradicional. Fotos estão sendo tiradas aos montes, por pessoas comuns, com o propósito de serem compartilhadas. A palavra fotografia é quase pesada demais para descrever o que se passa agora. Penso que é uma maneira de falar. Essas imagens são uma maneira de ter uma conversa, de passar tempos juntos. Não se trata de arte ou documentar a realidade.

Bem, é um maneira de ser e se expressar. É a experiência de se estar vivo e pensar: “eu quero compartilhar essa experiência, essa sensação”. As câmeras, hoje, são ótimas para isso. Nós podemos compartilhar visualmente o que sentimos. Chegamos a um nível de “alfabetização visual” que permite que nos comuniquemos bem com imagens. E acho que a maioria das fotografias que tiramos hoje entram nesse contexto cultural.

Mas será que esse fluxo quase interminável de imagens – e texto – que produzimos na internet não pode ter consequências negativas? Não seria essa uma das razões para o surto de desinformação que vivemos hoje?

Eu estou mais preocupado em como essas fotografias funcionam no dia a dia. Mas sim, elas são mais fáceis de manipular. E por isso muita gente considera que elas não estão mais ligadas à verdade. Para mim, essa manipulação e o uso criativo da câmera permitem que encontremos muitas verdades antes escondidas. Hoje podemos brincar com o mundo e dizer coisas antes impensáveis, mesmo não sendo “a verdade nua e crua”. Às vezes, as sensações são melhores do que a informação pura. Você, como jornalista, precisa de ambos. Mas contadores de história podem usar essas experiências para entender o que é ser humano. A poesia e a criatividade não são contrárias à verdade.

Você pode dar um exemplo dessa verdade através da experiência?

Digamos que 100 pessoas fotografem o mesmo acontecimento, cada uma com seu próprio celular. Elas terão perspectivas distintas, imagens diferentes e que podem até ser manipuladas. Mas elas nunca serão iguais e isso dá uma abrangência e profundidade maior para o que foi retratado. Muito mais do que se uma pessoa só registrasse o episódio. Não estou dizendo que a “Foto Social” é sempre verdade, mas esse sempre foi um tema complicado para a fotografia. Ela é verdade ou não? É um jogo? É o mesmo com a “Foto Social”.

No livro, você mostra que o aumento das fotografias e das redes sociais deu espaço para uma crítica sobre a “verdade” dessas experiências. Como se a vida digital fosse menos válida do que a vida material. De onde surge isso?

Eu chamo isto de “Dualismo Digital”, que é a ideia de que vivemos entre a “vida real” e o “ciberespaço”. De que o online e o offline são diferentes. A maioria das pessoas acredita nisso de alguma maneira. Mas eu sou crítico desse ponto de vista. Prefiro ver como essas duas facetas estão juntas e se misturam. E é algo que tenho interesse desde antes do livro, indo lá atrás na minha dissertação em sociologia. Não há algo ‘natural’ ou ‘real’ que não seja mediado pela tecnologia. Ela pode ser o seu celular ou o prédio em que você está agora. Mas no “Social Photo” eu não estou estudando a internet, pois não é simples compartimentalizá-la.

Por que a escolha pela fotografia e as redes sociais? O que faz delas um recorte mais interessante para discutir essa questão do dualismo digital?

Eu estou interessado na realidade do que acontece na tela. Como isso pode ser percebido e como se trata de algo político e físico. Essas são questões também quando conversamos cara a cara, e dialogam diretamente com a tela do seu celular. O que quero mostrar no livro é como as plataformas foram desenhadas para mudar a maneira em que você enxerga, fala e pensa quando não está mais olhando para a tela. Eu escrevi sobre fotografia e mídias sociais pois é uma intersecção muito fecunda entre o real e o digital, inclusive para colocar a crítica ao dualismo digital em prática. A realidade é uma potencialização do que é físico e da informação, e o mundo digital faz parte disso.

A quem interessa acharmos que esse dualismo existe? As grandes empresas de tecnologia parecem interessadas justamente no contrário, em acabar com isso. E elas são muito, muito poderosas…

Acho que ideologicamente, em um nível de propaganda, essas empresas vão, sim, concordar que não há dualismo digital. E, concordo, tudo que elas fazem têm a ver com a vida real, com consequências reais. Mas acho que elas não acreditavam nisso até pouco tempo atrás e só agora estão entendendo a dimensão das suas ações e práticas. Se chegaram a essa conclusão por conta das críticas, ótimo. Só que metade do meu livro é justamente sobre as muitas maneiras em que as plataformas foram criadas e pensadas sem esse entendimento. Mas com a ideia de que a vida deveria ser transformada em conteúdo e armazenada numa base de dados para sempre. Transformada em números, tabelas, métricas, notas e pontos.

Como você fala no livro, parece que essas redes existem só para que nós possamos nos comparar objetivamente: quem tem mais curtidas, compartilhamentos, comentários…

E não é assim que a vida social deve funcionar. Não podemos vê-la como conteúdo, algo a se classificar com notas ou pesquisável em uma base de dados. E esse é o erro fundamental no design das redes sociais e é por isso que nos sentimos tão ‘anti-sociais’ nelas. Elas foram criadas com essa ideia. Por isso digo que não é interessante dizer que as redes sociais ‘não são de verdade’. Pelo contrário, a crítica a elas se torna muito mais poderosa se feita sobre o quão reais elas são. A tela é real. Do contrário, o que acontece por ali passar a ser menos importante.

Quando o problema se torna menos importante, também significa que as empresas que o causam não acham necessário dar explicações para os usuários. E isso acontece recorrentemente no mundo do Vale do Silício. Mas você sente que isso pode ter mudado? Decisões como a do Instagram, sobre retirar as curtidas de sua plataforma, são um bom sinal?

Quero deixar claro: o Instagram anunciou apenas uma pequena fase de testes para essa mudança. Só está sendo feito no Canadá e não há qualquer motivo para achar que vai chegar no resto do mundo ou que será adotado pelo app. Hoje, o Twitter, Facebook e Instagram continuam completamente metrificados, repletos de notas, pontuações e tabelas. E isso faz as pessoas se sentirem mal. Dito isso, eu ficaria feliz se removessem as curtidas, pois seria ótimo. Só que não vejo isso acontecendo tão cedo.

E como esses números, tabelas e pontuações alteram nossas vidas fora das telas também?

Se você coloca um número em algo, você abre espaço para que se torne um jogo. E tudo que é um jogo será jogado [NT: Em inglês, o verbo “to game” significa tanto jogar quanto manipular]. Isso transforma nossas interações com a nossa família, como lemos as notícias e conversamos com os amigos. Colocar essas situações numa lógica das métricas e das hierarquias destrói tudo. É uma maneira horrível de se viver. Jogos têm espaço na vida, mas eles não são a vida. Por isso considero que todas essas redes são “Redes sociais de jogo”. Gostaria muito fossem mais sociais de verdade.

Quando o Instagram anuncia esse tipo de mudança, ou o Facebook declara que irá tentar transformar sua plataforma em um espaço de “conversas saudáveis”, o que exatamente está em jogo?

Sou bastante cético quanto a essa conversa de saúde feita pelas plataformas. É algo que o Jack Dorsey, criador do Twitter, fala muito: “saúde nas conversas” . Essa ideia de que nosso discurso público é diagnosticável, como se fosse uma doença que um médico pode tratar, é perigosa. Não existe uma visão objetiva sobre como as pessoas deveriam interagir entre si. O “saudável” será sempre uma visão pessoal, e isso me assusta. Não deveríamos viver nossas vidas sociais assim. Em outras palavras, ninguém deveria poder ser o “médico das redes sociais” ou diagnosticar um remédio para como as pessoas interagem e fazem política. Isso presume uma certa arrogância, como se houvesse uma visão divina da coisa. A vida social é bagunçada e complexa, e sempre foi através do tempo e do espaço. Nós nunca ficaremos “saudáveis”.

Essa postura se aplica a outras coisas nas redes sociais, como é o caso do “big data”, uma espécie de panacéia capaz de entender o mundo matematicamente. No seu livro, você chega a citar uma entrevista em que Mark Zuckerberg, criador do Facebook, diz querer descobrir a equação por trás das relações sociais. Você chama isso de uma nova lógica positivista.

Precisamos entender que a maneira como os dados são coletados e interpretados nunca é neutra. Que o que você pergunta a esses números é sempre tendencioso de certa maneira. E o mundo estatístico considera que isso deve ser negado. Mas todos temos um ponto de vista social e isso não é irrelevante. É melhor reconhecer essas perspectivas para tratarmos melhor esses dados. Boa parte do trabalho para reconhecer o impacto desses locais sociais nas ciências vêm do feminismo epistemológico dos anos 80 e 90, encabeçado por nomes como Sandra Harding e Donna Haraway. E acho que elas não recebem o crédito merecido por isso. Todo curso de ciência da computação deveria discutir essa questão.

Uma outra área de seu interesse é o que se chama de “humanidades digitais”. E me parece ser algo pouco discutido no Brasil. Você poderia descrever o que é esse campo de estudo e a sua importância?

Olha, também não temos muito dessa discussão nos Estados Unidos. A conversa sobre tecnologia acaba muito focada nos produtos, plataformas e empresas. Isso é importante, mas prefiro ir numa direção contrária. Não quero falar sobre o Instagram, mas sobre identidade. Não quero pensar sobre o Snapchat, e sim no que é o conceito de efêmero. É essa perspectiva que tento trazer na Real Life Magazine e na conferência Theorizing the Web.

Seu livro é focado no aspecto humano e social da fotografia de internet, e não em um nível necessariamente político. Você acha que isso frustra as expectativas de uma conversa sobre “empresas e plataformas”?

A maioria das pessoas quer que meu livro seja sobre a política e economia da imagem nas redes sociais. Eu quero pensar em democratizar esses espaços, acabar com o design ruim deles, mas faço isso em outros espaços. Aqui, achei importante falar sobre identidade, sobre a maneira que as pessoas vivem hoje. Podemos ser muito, muito críticos da plataforma mas acho que deveríamos ser mais empáticos com a experiência de viver na internet hoje. Muitos críticos de tecnologia diminuem os usuários, dizem que eles são menos humanos e não tem vida própria. Acho que isso é errado. E sempre foi assim: para certas pessoas, a tecnologia “desumaniza” e distrai. Estou lendo uma história dos cartões postais e não era diferente. Havia reclamações de que as pessoas só viajavam atrás dos cartões e não aproveitavam “de verdade” o local. O mesmo aconteceu com o noticiário televisivo e por aí vai. Acho esse ponto de vista desonesto.


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Helio Gama Neto