Como seduzir consumidores infiéis

Como seduzir consumidores infiéis

21 de junho de 2021
Última atualização: 21 de junho de 2021
Helio Gama Neto

ÉPOCA NEGÓCIOS – JUNHO DE 2021

Daniele Madureira

A pandemia acelerou o digital, ampliou o leque de opções e erodiu a fidelidade dos consumidores. A barra subiu. No mundo pós-covid, o desafio das empresas é melhorar a experiência dos clientes e agregar valor ao que vendem.

Sozinho, dentro do carro, um homem liga o som e fecha os vidros. A música é envolvente e fala de saudade. Ele suspira ao abrir o pacote e parece adivinhar o prazer que está prestes a desfrutar. Saca uma porção de batatas fritas e se delicia com os palitinhos. Depois, refestela-se com o hambúrguer, o refrigerante e o sundae. Ao terminar, desce do carro com as embalagens descartáveis vazias. Não conseguiu esperar chegar em casa para devorar o lanche. Ele está sozinho, isolado. Mas, aparentemente, satisfeito.

A campanha “Drive do Méqui. Seu carro, seu Méqui”, da rede de fast-food McDonald’s, que estreou em abril, dá o tom dos caminhos que o marketing vai trilhar no mundo pós-pandemia. A ação é uma sequência de outra iniciativa, o Méqui Sem Fila, lançado em setembro do ano passado. Trata-se de uma funcionalidade adicionada ao aplicativo do McDonald’s para permitir o pagamento remoto: o cliente pode comprar pelo celular e retirar o pedido no balcão. O celular substitui os totens de atendimento disponíveis nas lojas para reduzir as filas — e filas são algo de que ninguém vai sentir saudade quando a pandemia for controlada.

Os consumidores, claro, estão ansiosos por retomar alguns hábitos que tiveram de deixar para trás por causa da covid-19. Uma pesquisa realizada pela consultoria Gartner nos Estados Unidos, no início deste ano, revelou que comer em ambiente fechado de um restaurante é a atividade de que as pessoas mais sentem falta — 41% dos entrevistados disseram que pretendem matar essa vontade após tomar a vacina contra a covid-19. Mas, depois de experimentar as conveniências propiciadas pelo avanço da digitalização durante a pandemia, o nível de exigência dos consumidores aumentou. Nada será como antes. “Cinco anos atrás, eu jamais imaginaria fazer isso com o McDonald’s: estar na praça de alimentação, pedir pelo celular e só me levantar para buscar a comida”, diz João Branco, diretor de Marketing da Arcos Dorados no Brasil. A empresa é a maior franquia do McDonald’s no mundo e tem o Brasil como seu principal mercado na América Latina.

O McDonald’s foi uma das milhares de empresas de serviços e bens de consumo no país que, após o baque inicial da quarentena, tiveram de adaptar suas operações, estratégia e comunicação para o momento inédito na história. “Depois que comunicamos, em 19 de março do ano passado, que todos os nossos mil restaurantes e 2 mil quiosques de sobremesa no país ficariam fechados, pegamos nosso planejamento de marketing para 2020 e o rasgamos, folha por folha”, diz Branco, que, três anos atrás, foi responsável por nomear a rede no país com o apelido carinhoso de Méqui. A estratégia adotada pelo McDonald’s para enfrentar a crise foi batizada de 3D: drive-thru, delivery e digital. “Foi o que nos permitiu continuar gerando caixa”, afirma Branco.

Os resultados têm sido promissores. O número de downloads do aplicativo da marca no país subiu 47%, para 25 milhões, no ano passado. A operação de drive-thru, que antes representava menos de 20% das vendas no Brasil, hoje responde por cerca de 40%. A participação do McDonald’s no mercado brasileiro avançou quatro pontos percentuais: a cada R$ 100 gastos em fast-food, R$ 39 vão para o Méqui. Em 2019, eram R$ 35, segundo pesquisa realizada pela empresa de inteligência de mercado Mosaiclab com as 13 maiores redes de fast-food no país. Isso tudo em um mercado que encolheu muito. Segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), em 2020, cerca de um terço dos empreendimentos fechou as portas, e ao menos 1 milhão de pessoas ficaram sem emprego. Mas a vida não tem sido fácil para o McDonald’s. “Em 2020, depois de avançarmos por 160 trimestres seguidos em número de clientes e faturamento, foi a primeira vez que deixamos de crescer”, diz Branco. As receitas no Brasil caíram 20,3% no ano passado em relação a 2019. O lucro operacional no período encolheu 90,3%.

Para muitas empresas, uma das poucas vantagens da pandemia foi ter levado todo mundo para o online, um ambiente em que é possível monitorar as mudanças de comportamento do cliente. Nunca as companhias tiveram tanto acesso a dados sobre os hábitos e as preferências dos consumidores. Mas, para Luciana Faluba Damázio, professora e pesquisadora de estratégia e marketing da Fundação Dom Cabral (FDC), há um contraponto para essa abundância de informações: no ambiente digital, muitas práticas se tornaram commodity. “É preciso oferecer benefícios que façam o consumidor querer dividir seus dados com a marca”, afirma. “Nunca foi tão difícil captar a atenção do consumidor como hoje.”

Consumidores menos fiéis
Outra consequência da pandemia foi o aumento do leque de opções de produtos e serviços disponíveis nos canais digitais. Em todos os setores, as empresas foram forçadas a ampliar sua presença online para manter os negócios funcionando. O mundo se tornou um grande marketplace. Uma decorrência desse fenômeno foi a erosão sem precedentes da fidelidade às marcas. Um estudo realizado pela consultoria McKinsey com cerca de 2 mil consumidores americanos, em junho do ano passado, apontou que 75% deles haviam adotado um novo hábito de compra em resposta às pressões econômicas, ao fechamento de lojas e às trocas de prioridades. Essa mudança de comportamento se refletiu em quebras de lealdade: 36% dos consumidores experimentaram uma nova marca de produto, e 25% incorporaram uma marca própria de varejistas em substituição às tradicionais. Dos consumidores que experimentaram marcas diferentes, 73% pretendem continuar a usá-las depois que a crise da covid-19 passar.

O atual momento, segundo Luciana, remete ao best-seller Rápido e Devagar, do psicólogo israelense Daniel Kahneman, teórico da economia comportamental e ganhador do Nobel de Economia em 2002. No livro, que resvala para a neurociência, o autor discute como a mente funciona e como as decisões são tomadas. São duas formas: uma é rápida, intuitiva e emocional; a outra, mais lenta, deliberativa e lógica. “Quando tudo vai bem, ninguém altera o comportamento e toma as decisões rapidamente. Mas, agora, o cérebro passa a trabalhar com uma realidade complexa, de crise, em que precisa rever as tomadas de decisão”, afirma Luciana. Dito de outra maneira: “As empresas precisam entender que o consumidor tem grande chance de sair desta pandemia de maneira muito diferente da que entrou. Com outros valores e prioridades”.

Uma forma de reforçar ou reconstruir a fidelidade desse consumidor é melhorar sua experiência com a marca. Algumas empresas estão explorando novas possibilidades trazidas pelo ambiente online, como o live commerce, uma estratégia de venda de produtos usando transmissões ao vivo. “Com essa técnica, as marcas se transformam em um veículo de comunicação e criam sua audiência, estabelecendo uma relação própria com o cliente”, diz Roberto Kanter, professor da Fundação Getulio Vargas e especialista em varejo, comportamento do consumidor, tendências de mercado e marketing.

Quem tem usado esse recurso é o grupo de moda Soma, dono de marcas como Farm, Animale, Cris Barros e Maria Filó — e que comprou recentemente a Hering. Durante a pandemia, o Soma investiu em uma plataforma própria para transmitir seus desfiles, interagir com o público e vender produtos em tempo real. Durante as lives, apresentadores e influenciadores exibem, discutem e experimentam as peças das grifes. Nas 11 lives realizadas no quarto trimestre do ano passado, o Soma faturou quase R$ 5,5 milhões. “A transmissão das lives foi a maneira que encontramos para manter os lançamentos e despertar o desejo de compra na quarentena”, diz Alisson Calgaroto, diretor de tecnologia e inovação do grupo.

O Soma aposta também no social selling — uso das redes sociais para aumentar as vendas. São cerca de 4 mil revendedoras em todo o país, que divulgam as marcas nas redes sociais e procuram redirecionar os clientes para a plataforma do grupo. Também adepta do social selling, a varejista de moda C&A incorporou uma novidade neste ano: as próprias consumidoras da rede passaram a ser treinadas para anunciar os produtos em suas respectivas redes sociais. A comissão para as compradoras-vendedoras chega a 10% sobre o preço dos itens. A fatia do digital dentro das vendas totais da varejista subiu de 2,5% em 2019 para 10% em 2020. Foi um bom motivo para a C&A reforçar o patrocínio ao Big Brother Brasil (BBB), cuja 21ª edição terminou em 4 de maio. “O programa é uma fonte de entretenimento que dialoga com as necessidades da nossa cliente, que busca um momento de descontração em meio à rotina diária”, diz Mariana Moraes, gerente sênior de marketing da C&A. Ela destaca que, na edição deste ano, ocorreu o primeiro desfile de hologramas da história do reality em uma festa C&A, com uma passarela usando realidade aumentada. Os resultados superaram as expectativas. O número de downloads do aplicativo da empresa cresceu 80% durante a atração na TV.

Mesmo sendo uma vitrine e tanto, o BBB também pode respingar negativamente. Foi o caso da rapper Karol Conká e da Avon. Patrocinadora do reality, a fabricante de cosméticos chegou a ter a cantora como estrela de campanhas entre 2017 e 2019. A participação de Karol no programa este ano, porém, foi desastrosa: ela desagradou a boa parte do público com seu comportamento e foi eliminada da casa com 99,17% dos votos. Nas redes sociais, sobrou para a Avon, que esclareceu não ter vínculo com a rapper e pediu compreensão para a eliminada, em um momento em que os “cancelamentos” de personalidades dispararam na internet.

Promessas de valor
Diante das incertezas em relação à duração e aos efeitos da pandemia, é crucial entender o que motiva os consumidores na decisão de compra. Uma pesquisa da consultoria EY, com 14 mil consumidores de 18 países, apontou que 30% deles consideram o preço acessível como o fator mais importante. Mas o estudo revelou que preço não é tudo: 26% dos entrevistados compram produtos e marcas em que confiam e que não representem riscos à sua saúde. Para 17%, o planeta vem em primeiro lugar — eles valorizam produtos de alta qualidade e sustentáveis. Outros 16% colocam a sociedade em primeiro lugar — preferem comprar de empresas éticas e transparentes. E 11% são os menos preocupados com a saúde e as finanças, valorizando antes de tudo a experiência de compra.

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Os dados mostram que a forma como uma companhia se posiciona em relação à sociedade e ao planeta está se tornando cada vez mais importante. “A comunicação no pós-pandemia demanda marcas que ouvem e se importam com as pessoas”, diz Fabrício Saad, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Ele avalia que as empresas têm evoluído na tentativa de incorporar ao seu negócio os conceitos de governança ambiental, social e corporativa (ESG) — seja por vocação, seja por pressão dos investidores e da sociedade. “Na época em que estamos vivendo, o nome do jogo é empatia”, afirma Saad. “O Magazine Luiza, por exemplo, provou na pandemia ser uma marca que ouve e se importa com as pessoas.” O especialista cita a iniciativa da rede varejista de lançar um programa de trainees voltado a negros, para suprir a falta de diversidade no alto escalão da companhia.

Na análise de Saad, o posicionamento adotado por empresas como Madero e Havan — que criticaram o isolamento social e o fechamento do comércio ainda no começo da pandemia — destoam do conceito de solidariedade, que é o que o público espera das marcas em momentos de crise. “Ainda que os empresários tenham o direito de discordar das medidas adotadas, é preciso ter tato e, mais uma vez, empatia”, diz Saad. Luciana, da FDC, tem a mesma opinião. Para ela, é preciso tomar partido em questões que interessam a toda a sociedade, mas com o cuidado de não cair no jogo político. “A marca precisa tangibilizar promessas de valor, por meio da entrega de utilidades”, diz. “O novo momento exige uma estratégia de abordagem da marca bem mais elaborada, que vai muito além de promover soluções com produtos ou serviços.”

Um bom exemplo é a multinacional americana Nike. A gigante de materiais esportivos veio a público renegar o próprio slogan que se tornou célebre (Just do it, ou “Simplesmente faça”) com a campanha antirracista For once, don’t do it (“Desta vez, não faça”). A ação veio na esteira do movimento Black Lives Matter, que se espalhou pelo mundo inteiro no ano passado, depois que o negro George Floyd foi asfixiado e morto por um policial branco nos Estados Unidos. Ao longo do ano, a marca também procurou inspirar os consumidores sobre o grande poder do esporte e a importância de continuarem ativos, mesmo com a pandemia. A campanha You can’t stop us (“Nada pode parar a gente”) contou com uma série de três filmes, que já somaram 22 milhões de visualizações no Brasil e 200 milhões no mundo.

Os especialistas lembram que as empresas costumam fugir de conflitos, sobretudo em tempos de polarização: em geral, elas não querem ofender os clientes ou associar suas marcas a assuntos sensíveis. Mas, ao alinhar os valores corporativos com a preocupação dos consumidores, as empresas estão no caminho para criar um senso de lealdade e de conexão pessoal com as marcas. Isso é especialmente importante em um mundo onde o consumidor não é mais fiel à marca, mas às suas necessidades. “A sociedade vem exigindo verdade por parte das empresas”, diz Kanter, da FGV. Ele afirma que a maior transformação para enfrentar o mundo pós-pandemia não é tecnológica, mas cultural. “CNPJs não tomam decisões, mas sim os CPFs que estão por trás deles.” É o marketing se adaptando aos novos tempos.

Quando a vida voltar à normalidade
Hábitos que os consumidores pretendem retomar depois de tomar a vacina contra a covid-19

41%: Comer em ambiente fechado em restaurante
32%: Receber pessoas em casa
32%: Viajar de avião
31%: Hospedar-se em hotel
26%: Fazer tratamentos médicos que haviam sido adiados ou negligenciados
23%: Voltar a trabalhar em escritório ou em espaço compartilhado
21%: Manter contatos presenciais com outras pessoas
17%: Visitar familiares em abrigos e casas de repouso
17%: Frequentar cultos religiosos
15%: Deixar de usar máscara facial
15%: Enviar os filhos de volta à escola
15%: Participar de eventos com grande público
12%: Nenhuma das opções acima


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Helio Gama Neto