Como o jornalismo cultural latino-americano resiste à pandemia

Como o jornalismo cultural latino-americano resiste à pandemia

25 de junho de 2020
Última atualização: 25 de junho de 2020
Helio Gama Neto

IJNET – 23/06/2020

CONSUELO FERRER

No dia 3 de maio, o @Supay.pe subiu sua primeira foto no Instagram. Diante da interrupção dos suplementos culturais, gastronômicos e turísticos do jornal, os jornalistas se reuniram para montar seu próprio projeto, segundo a conta.

“Já criamos um certo nome”, diz um de seus fundadores, o jornalista Luis Miguel Santa Cruz, do Peru. A página —que anuncia peças de teatro online, resenhas de filmes e entrevistas com artistas— tem 204 seguidores. O projeto surgiu em um cenário completamente desestabilizado pela pandemia: não apenas os eventos culturais se tornaram virtuais, mas a cobertura sofreu seu próprio golpe.

Até março, Santa Cruz escrevia sobre teatro, turismo e gastronomia nos suplementos Variedades e Lo Nuestro, do El Peruano. “Ambos foram suspensos”, ele conta. “É óbvio o impacto que o setor cultural recebeu dentro da imprensa. Nessas semanas, foi o primeiro a cair.”

“Quando as quarentenas começaram, foi erroneamente determinado que a cultura era o que precisava ser deixada de lado para priorizar outras coisas”, diz ele. “As seções não foram completamente fechadas, mas a maioria dos trabalhadores culturais estão paralisados e alguns foram demitidos formalmente.”

Isso também aconteceu no Chile, onde o vírus teve um impacto econômico profundo na mídia impressa. Um dos casos mais emblemáticos é o da revista Sábado do jornal El Mercurio, que publica crônicas e reportagens há mais de 20 anos. Em 16 de maio, a revista foi impressa pela última vez em papel revestido e despediu-se de todos os colunistas de filmes, séries, gastronomia e livros.

Isabel Plant escreveu por 15 anos sobre séries e televisão nessas páginas. “Os espaços de crítica cultural foram reduzidos ao mínimo”, diz ela. “Os críticos especializados perderam esse espaço porque a situação econômica força a mídia a manter apenas os ferros da estrutura”, diz ela, “embora a cultura também seja uma.”

Uma fuga da crise
O que acontece no Chile, afirma a jornalista musical Marisol García, pode ser definido como “parte de uma crise internacional que exige priorizar o conteúdo”. Entretanto, o país, diz ela, tem “prioridades curiosas” e “miopia editorial”. “Os melhores jornais do mundo mantêm suas seções, inclusive de cultura, bem nutridas”, diz ela. Até o final de maio, García tinha uma seção de música na Tele13 Radio, mas agora não tem mais.

No Peru, Santa Cruz também percebe esse padrão. “Existe uma desconexão muito grande entre os diretores de mídia e o público. A cultura sempre foi considerada o setor menos importante que a mídia cobre e está misturada com entretenimento”, diz ele. Pela resposta que seus artigos recebem nas redes sociais, você acha que é o conteúdo que os leitores desejam receber. “Há um interesse que não está sendo capturado, porque tudo é visto com base nas vendas”, diz ele.

Esses jornalistas garantem que o papel do jornalismo cultural não é secundário e menos durante uma pandemia. “Serve para canalizar essa tensão e estresse que estamos enfrentando. É uma forma de alívio e distração. Peças virtuais, leituras dramatizadas, conversas e workshops estão servindo para que as pessoas encontrem um tipo de alívio para o que estamos vivenciando. Muitos estão abraçando esse movimento cultural para encontrar paz”, diz Santa Cruz.

“O consumo cultural é o que está nos salvando da crise e não acho que as pessoas não o vejam. Acho que não é que não seja valorizado, mas que não há recursos para pagar por isso”, diz Plant. “Em mais de 100 anos, quando esse período for revisto, visitaremos o cinema, o teatro, as músicas. É o que se recorre para saber como as pessoas viviam. É o espelho e a memória. É tudo.”

Se o público pede…
Outro panorama é vivenciado na redação do jornal La Diaria, no Uruguai. “O jornal não reduziu ou demitiu ninguém, mas também é preciso dizer que é muito especial”, explica o coordenador da seção de cultura, José Gabriel Lagos. O jornal opera com base em uma cooperativa. Mais de 70% de sua renda é proveniente de assinaturas.

Assim que o vírus chegou, eles criaram um suplemento chamado “En casa”, onde cultura, shows e atividades complementares, como palavras cruzadas e enigmas, são reunidos. “Havia uma função social: manter nossos leitores, entretidos além de informados”, diz ele. Segundo Lagos, a seção de cultura tem um pouco mais de espaço do que antes.

“É também um cálculo de sobrevivência”, explica ele. Devido à forma como o jornal é financiado, ele diz, o critério predominante era o que os leitores precisariam. “Eles afetam nossos números mais diretamente do que a publicidade. Se removermos as páginas para colocar anúncios, isso poderá causar desinteresse e poucos assinantes”, acrescenta.

A recepção foi boa. “Eles nos dizem as respostas das charadas, enviam fotos. Estou aqui desde 2006 e sinto que desta vez a resposta não é apenas maior, mas também mais refinada. Todos os dias estou respondendo e-mails por um longo tempo, algo que nunca me aconteceu antes”, explica.

Reinvente-se
A contingência forçou os jornalistas da cultura a sofrer mutações. No início da pandemia, o colunista do La República, no Peru, Marco Sifuentes, decidiu criar o podcast “La Encerrona”, um dos mais ouvidos no país. “O próximo passo será criar nossos próprios empreendimentos digitais”, diz Santa Cruz.

Plant, por sua vez, espera que essa crise seja momentânea. “Também espero que as novas plataformas sejam aproveitadas e que os colunistas culturais possam encontrar modelos de negócios adequados para os novos tempos”, diz ela.

“Minha fórmula é nunca abandonar pelo menos um espaço para colaboração em cultura, embora, infelizmente, eu deva combiná-lo com várias outras fontes de renda”, acrescenta García. “É cansativo, exigente e frustrante, mas não estou disposta a abandonar minha vocação. É, neste momento, um modo de resistência.”


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Helio Gama Neto