As “fake news” atingem também os negócios
ÉPOCA NEGÓCIOS – 24/07/2019
DORA KAUFMAN*
Dois professores da Universidade de Washington, Jevin West e Carl Bergstrom, criaram o jogo online “Qual Rosto é Real” a partir de milhares de rostos humanos virtuais artificiais desenvolvidos pela dupla. O desafio consiste em adivinhar qual rosto é verdadeiramente humano. Meio milhão de jogadores disputaram 6 milhões de rodadas. A tecnologia do jogo é da Nvidia, empresa de processadores gráficos, e usa redes neurais (deep learning/inteligência artificial) treinadas num imenso conjunto de retratos de pessoas. O percentual de acertos girou em torno de 60% na primeira tentativa, atingindo 75% de precisão em tentativas posteriores. Segundo seus criadores, a intensão foi alertar a sociedade sobre a capacidade tecnológica atual de gerar imagens falsas. O risco é que não há como evitar usos não tão nobres dessa tecnologia.
Em outro exercício acadêmico, dois pesquisadores da Global Pulse, iniciativa ligada à ONU, usando apenas recursos e dados de código-fonte aberto, mostraram com que rapidez poderiam colocar em funcionamento um falso gerador de discursos de líderes políticos em assembleias da ONU. O modelo foi treinado em discursos proferidos por líderes políticos na Assembleia Geral da organização entre os anos de 1970 e 2015. Em apenas treze horas e a um custo de US$ 7,80 – despesa com recursos de computação em nuvem – , os pesquisadores conseguiram proferir discursos “realistas” sobre uma ampla variedade de temas sensíveis e de alto risco, de desarmamento nuclear a refugiados.
O tema das fake news ganhou visibilidade pelos impactos negativos em processo eleitorais, sobretudo na eleição de Donald Trump em 2016 com os bots russos se passando por eleitores – americanos. No Brasil, a eleição de 2018 disseminou o uso de robôs e tecnologias de impulsionamento automático de mensagens visando influenciar os eleitores. A produção de conteúdo falso (fake news) não só está se proliferando como se sofisticando: agregando inteligência artificial, despontam as deep fakes!
O fenômeno de falsificação na internet extrapola o âmbito das notícias e da política, atingindo igualmente o mundo dos negócios, particularmente as plataformas centradas em dados. A Review Meta, um site independente que monitora a veracidade do feedback online, identificou um crescimento de avaliações na plataforma da Amazon postadas por usuários que não compraram o item em questão, ou seja, não experimentaram o produto e, não por coincidência, 98,2% dessas postagem avaliam em cinco estrelas. Zeynep Tufekci, em artigo na revista Wired (julho/agosto 2019) alerta que as alegações de falsidade também podem ser falsas: “Na Amazon, você dificilmente pode comprar um filtro solar simples sem encontrar avaliações que alegam que o produto é falsificado. Aliviado por ter sido avisado, você pode ficar tentado a não comprar. Mas talvez essa revisão em si seja falsa, plantada por um concorrente”.
O modelo de negócio do Google e Facebook, para citar dois dos gigantes de tecnologia, baseia-se em oferecer aos anunciantes acesso segmentado aos potenciais consumidores, tornando mais assertivas as campanhas publicitárias online. Observa-se, contudo, que esse modelo também está suscetível a fraudes, repleto de visualizações e cliques falsos. Em 2016, o Facebook admitiu ter exagerado na quantificação do tempo que seus usuários assistem vídeos na plataforma, caracterizando como um “erro” com efeito zero sobre o faturamento. Aparentemente, não foi esse o entendimento de muitos pequenos anunciantes: em 2018 entraram com uma ação coletiva alegando que a rede social estava inflando seus números propositalmente.
São muitos os exemplos mundo afora. Na Bulgária, em 2017, por exemplo, o Spotify sofreu um esquema que levou US$ 1 milhão: fraudadores geravam músicas de 30 segundos (tempo médio de escuta) e criavam contas falsas automatizadas para reproduzi-las. Assim, embolsavam a diferença entre os royalties e a quantia paga à plataforma para listar suas próprias faixas.
Vivemos um período de crise generalizada de confiança, que extrapola os eventos na internet. Acima de regras morais e éticas, arcabouço regulatório e sistemas de punição, para funcionar de maneira sadia a sociedade precisa de um mínimo de confiança entre seus agentes – instituições, governos e cidadãos. As facilidades da tecnologia e do meio digital só exacerbam o atual cenário.
Dora Kaufman é pós-Doutora COPPE-UFRJ (2017) e TIDD PUC-SP (2019), Doutora ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV. Autora dos livros “O Despertar de Gulliver: os desafios das empresas nas redes digitais” (2017), e “A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?” (2019). Professora convidada da FDC e professora PUC-SP.