A publicidade e o consumo na sociedade algorítmica
MEIO&MENSAGEM – 18/02/2020
Marcelo Coutinho
Acrescente automação do trabalho abre espaço para o aumento da importância das marcas que souberem articular e contar boas histórias ligadas à definição da identidade dos indivíduos. Essa é uma das minhas conclusões ao terminar o excelente A World Without Work, de Daniel Susskind, economista de Oxford [e filho de Richard Susskind, criador do primeiro programa de inteligência artificial (IA) no ramo do direito]. É a lógica da economia, e não da tecnologia, que vai automatizar um número cada vez maior de atividades. A razão é simples: o retorno do investimento em automação é muito maior que o retorno do investimento em postos de trabalho.
Assim como aconteceu com as atividades manuais, primeiro estamos automatizando as tarefas intelectuais mais simples, mas é questão de tempo para que atinjam um patamar mais sofisticado. Veja o caso dos analistas que povoam os departamentos financeiros com a função de interpretar planilhas. Diversas empresas, como a Automated Insights, já comercializam programas que analisam os resultados trimestrais das empresas e escrevem uma matéria sobre o assunto (a Associated Press produz a maior parte da sua cobertura dos resultados de Wall Street por meio desse software).
Todas as tarefas que envolvem rotinas, mesmo as mais sofisticadas intelectualmente, sofrerão em algum grau com este movimento. Esse é um fenômeno já observado no ramo do direito e que está chegando com força na medicina, auditoria e na publicidade. A inteligência artificial é um insumo produtivo que tende a ficar cada vez mais barato (visite o site de IA do Google, da Amazon Web Services ou do Watson, da IBM, e comprove o que estou falando), portanto, cada vez mais utilizado. Não me refiro aos programas de automação “tradicionais” (mídia programática, reconhecimento de imagens e sentimentos em redes sociais etc.), mas aos softwares mais sofisticados, como o Li Bai, criado pelo JD, um dos maiores marketplaces da China. O sistema analisa as palavras utilizadas nas buscas feitas pelo consumidor, combina com sua “trilha de clicks”, milhares de descrições de produto armazenadas no site e cria um conteúdo totalmente adaptado de forma praticamente síncrona com o momento que ele consome mídia. Outros robôs analisam os resultados de cada peça de acordo com os mais variados parâmetros, tentando “prever” o resultado de cada criativo.
O problema não é “só” o desemprego e a convulsão social que esses avanços vão causar até que as futuras gerações cheguem a um novo contrato social, que vai envolver a distribuição de parte dos ganhos de produtividade gerados pela inteligência artificial (claro que este não será um processo suave, ao contrário do que pregam as palestras com robozinhos dançantes). A ideia de que o trabalho como “provedor” dê um sentido para a existência é uma noção relativamente nova na história, fruto basicamente do movimento protestante e do “desencantamento do mundo” (ou seja, as variadas formas de misticismo), conforme demonstrou Weber. Sem trabalho, ou com um trabalho muito abaixo da nossa capacidade, a própria identidade e noção de valor individual fica ameaçada (converse com aquele seu amigo ou parente desempregado ou que está trabalhando de motorista de aplicativo para compreender muito rapidamente o que isso significa).
É claro que, quanto mais difícil fica achar algum “significado” no trabalho que transcenda sua contribuição para a sobrevivência material, maior o espaço para outras formas de “significação”, como o consumo — é disso que nós, publicitários, vivemos. O que nos leva à seguinte questão: quais são as habilidades que vão levar mais tempo para serem automatizadas? Como as marcas se inserem neste espaço?
Como podemos acompanhar nas excelentes discussões sobre o futuro do trabalho aqui mesmo no Meio & Mensagem, os seres humanos possuem três habilidades que permitiram a construção da sociedade moderna: habilidades manuais, habilidades intelectuais e habilidades relacionais. As habilidades manuais já foram automatizadas. Nesta década, vamos ver a automação das habilidades intelectuais. Sobram, portanto, com mais algum tempo, as habilidades relacionais.
A capacidade de demonstrar empatia, de cuidar do próximo e de se identificar com o outro ainda estão bem distantes das máquinas — e nem mesmo está claro se os seres humanos irão se adaptar a isso (para quem tiver interesse no assunto, não do ponto de vista técnico, mas emocional, recomendo Máquinas como Eu, do Ian McEwan. Esse talvez seja o grande “déficit” que a tecnologia não vai preencher. Em um mundo no qual o trabalho ocupa uma parcela cada vez menor da população, o que vai acontecer com a maneira como formamos nossa identidade? Qual será o papel do consumo neste processo?
Em algum momento, chegaremos a um novo contrato social no qual os ganhos de produtividade decorrentes da automação serão trocados por formas de trabalho que tenham uma contribuição socialmente importante — criar os filhos, cuidar dos idosos etc. As marcas que vão sobreviver são aquelas que anteciparem este movimento e destacarem as habilidades relacionais que seu uso permite criar.
Coordenador do mestrado profissional em administração da Fundação Getúlio Vargas