A crise na Venezuela e o vídeo que viralizou, mas não pôde ser checado
Cristina Tardáguila
O assunto merecia, portanto, toda a atenção dos verificadores. Por isso, a rede LatamChequea construiu uma iniciativa de colaboração e passou a trabalhar de forma conjunta, trocando checagens e publicando artigos verificados durante toda a jornada sob uma única hashtag, a #VENfacts. O resultado do trabalho feito por Agência Lupa, Ecuador Chequea e Chequeado pode ser visto aqui .
Mas a coluna de hoje é sobre os limites da verificação. Porque eles existem.
Um dos vídeos que mais circularam na terça-feira, uma gravação dramática que mostrava a rendição de militares fardados por companheiros de tropa, não pôde ser checada por ninguém. Todos os fact-checkers da coalizão latino-americana se envolveram no trabalho. Trocaram mensagens, apurações oficiais e impressões. Mas, por dificuldade de acesso a dados e em decorrência da ultrapolarização vivida na Venezuela, não foi possível concluir quem afinal rendia quem naquela cena. Assim sendo, a dúvida permaneceu, e o vídeo foi usado com fartura, pelos dois lados da crise, como “prova irrefutável” de sua enorme força e sucesso. A checagem padeceu.
É bem possível que você tenha recebido essa gravação. Tente recordar. Ela mostra uma avenida ensolarada onde estão parados dois veículos brancos da Guarda Nacional Bolivariana.
Vídeo mostra militares sendo rendidos por colegas na Venezuela Foto: Reprodução
Vídeo mostra militares sendo rendidos por colegas na Venezuela Foto: Reprodução
A cena é filmada por uma mulher, com um celular, de um edifício em frente à avenida, mas um pouco distante. A mulher narra o momento exato em que um grupo de militares fardados e fortemente armados se aproxima, a pé, desses tanques e obriga os passageiros a descer dos veículos e se render.
A narradora comemora. É claramente partidária de Guaidó e, de longe, entende que os militares que lutam pela sustentação do governo de Nicolás Maduro são aqueles que estão dentro dos veículos e que os militares a favor de Juan Guaidó são aqueles que conseguem a rendição.
Mas como comprovar isso? Assista ao vídeo aqui .
Logo de cara, os fact-checkers descobrem que a cena havia se dado na Avenida Francisco Fajardo, de Caracas, e que o ministro da Defesa da Venezuela, Vladimir Padrino, tinha falado sobre ela numa coletiva de imprensa concedida poucas horas depois.
Para Padrino, um grupo “minúsculo” de militares e funcionários policiais havia roubado veículos e armas da Guarda Nacional Bolivariana para participar do movimento proposto por Guaidó. Eles tinham sido detectados e imobilizados pela Inteligência venezuelana.
Nas redes, no entanto, dezenas de pessoas já compartilhavam a mesma gravação sugerindo exatamente o contrário. Junto com as hashtags de apoio a Guaidó, #OperaciónLibertad e #30Abr, postavam o seguinte: “Militares compatriotas pressionam seus companheiros para que desçam dos tanques na rodovia Francisco Fajardo (…) Vamos apoiá-los”.
Nos bastidores da iniciativa #VENfacts, os checadores analisavam detalhadamente os frames do vídeo em busca de diferença nos uniformes ou nas armas. Nada. Tudo igual. Buscavam também possíveis detalhes em áudio. Mas, da distância em que o celular está, não foi possível captar o que os militares disseram entre si. Na gravação também não havia rostos. E a dificuldade se instalou. Quem rendeu quem? Em quem acreditar?
Houve então o debate político: “Teria o ministro da Defesa mencionado o caso numa coletiva postada no Twitter se sua tropa tivesse sido rendida em plena luz do dia?”. E mais: “Será que a mulher que gravou esse vídeo ouviu alguma conversa entre os militares ou será que ela viu na avenida aquilo que tanto desejava?”.
Pipocou então na Argentina uma postagem do portal Infobae , de grande audiência, com um título razoavelmente questionável do ponto de vista da checagem. “Assim se rendem os militares chavistas”, dizia o post, com o vídeo embedado — e nenhuma outra explicação adjacente.
Os checadores lamentaram. E as redes sociais também. Foram diversos os comentários que procuravam entender: “Mas, afinal, o que exatamente estou vendo nessa imagem? Quem está rendendo quem?”.
A dúvida permanece até agora.
*Fundadora da Agência Lupa e diretora adjunta da International Fact-checking Network (IFCN)