A coexistência do business de empresas jornalísticas e das social tech giants é possível – e necessária
ORBIS MEDIA REVIEW – 02/02/2021
ANA BRAMBILLA
Não é preciso trabalhar com redes sociais há muito tempo para lembrar dos incontáveis anúncios que as plataformas fizeram com o intuito de manter seus newsfeed longe das fake news. Além de destinar, eventualmente, gordas verbas de PR para veículos, empresas como Facebook, Twitter e mesmo o Google assumiram o papel de social justice warrior. Além de abraçarem causas ligadas às minorias identitárias, chamaram a si a tarefa de lutar contra a desinformação em seus ambientes. Nada mais justo… quanto “insustentável”.
Algumas das iniciativas…
… em novembro de 2020, o Twitter passou a notificar usuários que curtissem conteúdos sinalizados como “enganosos”;
… em maio de 2020, o Facebook comunicou a criação de um “conselho internacional independente” – com direito a ganhador de Nobel da paz – que decidiria o que os usuários poderiam ver ou não;
… em novembro de 2020, o Twitter revelou plano para “conter a desinformação” nas eleições norte-americanas;
… em outubro de 2020, o Twitter anunciou a chegada do Birdwatch, em teste desde agosto daquele ano, uma possibilidade de os usuários contextualizarem tweets que trariam mensagens reportadas como falsas;
… em setembro de 2020, o Twitter colocou no ar uma funcionalidade que alertava os usuários para lerem um conteúdo linkado antes de compartilharem. A ferramenta dizia: “As manchetes não contam toda a história“;
… em outubro de 2020, TikTok e Twitter fecharam parceria com o Tribunal Superior Eleitoral para “evitar fake news” nas eleições municipais brasileiras;
… um ano antes, em outubro de 2019, o Facebook lançou uma aba exclusiva para notícias, na intenção de “conter as fake news”;
… em dezembro de 2019, uma ferramenta do Instagram se propôs a “filtrar as fake news”;
… em abril de 2019, o Facebook assinou acordo com uma série de redações brasileiras que colaborariam com o programa global de fact cheking da rede;
… esse programa, aliás, já existia desde 2016 e em 2018 passou a contar com agências verificadoras de informação, como a Lupa e a Aos Fatos;
… além de outras tantas iniciativas (se você lembrar de mais alguma, por favor, conte nos comentários!).
Segundo o próprio Facebook, medidas como as parcerias de fact checking resultaram na diminuição de 80% das fake news nos Estados Unidos. “Estamos comprometidos em combater a disseminação de notícias falsas no Facebook“, anunciava em 2018 a líder de parcerias com veículos de mídia para LatAm.
Pouco mais de dois anos depois, em meio à ameaça planetária de sofrer regulação em diversos países, as social big techs começam a pedir socorro.
O head do Facebook no Canadá, Kevin Chan, declarou recentemente que não é mais sustentável as empresas de social media autorregularem os conteúdos que circulam em seus ambientes e que é tempo de os governos entrarem na jogada.
Leia um trecho da declaração:
“Neste momento, são empresas privadas – como o Facebook – que decidem o que pode ou não ser veiculado no Facebook e achamos que muitas pessoas não estão de acordo com isso. Elas querem políticas públicas onde haja responsabilidade pública legítima e democrática. Então, se os legisladores puderem acordar onde esta linha limítrofe deve ser traçada e então impô-la a nós, isso certamente seria bem-vindo.”
Conteúdo impróprio, como calúnia (grosso modo, fake news), injúria e difamação (discurso de ódio), já é legalmente proibido e amplamente rejeitado em regimes democráticos. Quem sempre flertou com os limites entre a informação publicável e a ofensa foi o humor, mas o jogo de cena que as big techs têm feito com veículos jornalísticos perdeu a graça há muito tempo.
Empresas jornalísticas estão duplamente em desvantagem em relação às redes sociais: perdemos a publicidade para elas e ainda trabalhamos de graça, alimentando perfis com conteúdo profissional que sequer convertem em visitas aos nossos produtos digitais. A pergunta é: qual o objetivo de veículos continuarem alimentando seus perfis com chamadas de conteúdo? O esforço realmente compensa?
Sob a chancela do livre mercado, as redes sociais se ergueram sobre um modelo de negócios sabidamente predatório aos veículos jornalísticos. Olhemos para o ecossistema econômico global, em que diferente indústrias coexistem, e notamos que o transporte por aplicativo erodiu o mercado de táxis, assim como o AirBnB estremeceu a indústria hoteleira. Mas em nenhum desses casos o negócio inovador se alimentaria dos antecessores: Uber prescinde táxis e AirBnB não se estabeleceu usando hotéis. Já as redes sociais, ainda que não dependem do conteúdo jornalístico, souberam se aproveitar muito bem dele e das empresas de comunicação para não orkutizar.
Veículos podem evitar que plataformas se “orkutizem”
Muito já se especulou sobre “o que seriam das redes sociais sem conteúdo produzidos por profissionais” e a resposta é esta: seriam um Orkut. Vale dizer que o Orkut e redes contemporâneas ainda pouco habitadas por marcas jornalísticas (como Twitch e TikTok) guardam a preciosidade do diálogo interpessoal com dimensão midiática, isto é, indivíduos se unem ao redor de interesses compartilhados e trocam informações de extrema relevância particular. Mas esteja seguro de que poucos acessam tais redes com a intenção de ver notícias, como fazemos com Facebook, Twitter, YouTube e mesmo Instagram ou WhatsApp.
É importante lembrar da insistência com que as social tech giants afirmam que não são veículos jornalísticos e nem querem ser – elas sabem que isso implicaria assumir a responsabilidade sobre algo que não conseguem gerenciar: o conteúdo.
É bem verdade, porém, que as plataformas onde os veículos ainda não operam abrigam toda sorte de material, conteúdo vulgar – quando não ilícito – e levam seus próprios usuários a se perceberem cercados pela idiotice humana. Àqueles que não lembram, foi daí que se popularizou o termo pejorativo orkutizar. O Orkut orkutizou quando foi adotado massivamente e povoado por qualquer conteúdo (sem filtros e sem a presença de veículos jornalísticos). Foi a partir deste momento que o Orkut entrou em declínio.
Sobram pesquisas mostrando quanta gente usa as principais redes sociais como fontes de notícias. A expressão social media as a news source chega ter um verbete da Wikipedia. Outro indicativo do quanto as redes precisam do conteúdo jornalístico em seus newsfeed são os projetos de parceria que Google e Facebook oferecem a redações mundo afora, amplamente sustentados no discurso do quanto essas big techs acreditam em um jornalismo de qualidade e querem contribuir para que a indústria editorial se fortaleça!
Ocorre que Google News Initiative e Facebook Journalism Project estão longe de contornar o estrago que as big techs causaram aos veículos. As empresas jornalísticas, aos poucos, acordam para esta realidade. Daí surgem, pelo menos, dois posicionamentos:
(1) Não, as big techs não devem ser responsabilizadas pela crise financeira nas redações
Neste caso vale lembrar que veículos criaram o hábito de compartilhar seus conteúdos gratuitamente nas redes com a intenção clara e válida de aumentar suas audiências e, com isso, fazer crescer o faturamento publicitário. Estávamos enganados – é preciso reconhecer. A audiência já não vem mais sem boost post e o faturamento publicitário migrou para os newsfeed.
Jogar a responsabilidade sobre o conteúdo para o poder público significa onerar ainda mais o Estado – consequentemente, o cidadão -, atribuindo a governos inaptos uma tarefa crucial para manter estas plataformas operantes. Tanto a máquina estatal quanto as administrações públicas são inaptas a dar limite para os conteúdos das redes sociais simplesmente porque desconhecem os processos, porque os algoritmos são opacos e inacessíveis, porque o esforço de fiscalização é tão inviável que os próprios donos das plataformas já não conseguem mais lidar com o peso que isso representa.
Na realidade, portanto, empresas jornalísticas estão duplamente em desvantagem em relação às redes sociais: perdemos a publicidade para elas e ainda trabalhamos de graça, alimentando perfis com conteúdo profissional que sequer convertem em visitas aos nossos produtos digitais (sites, apps, assinaturas, whatever). A pergunta é: qual o objetivo de veículos continuarem alimentando seus perfis com chamadas de conteúdo? O esforço realmente compensa?
Não se trata de abandonar as redes sociais; apenas repensar o jeito como veículos se fazem presentes nas plataformas, de maneira que faça sentido tanto para eles, quanto para o público, quanto para as próprias big techs.
Àquelas redações que ainda registram vantagem significativa de negócio ao publicar seus links nas redes, não há do quê responsabilizar as big techs. Quando a troca é justa, cada um faz a sua parte do negócio: veículos se comprometem com a produção de conteúdo e redes sociais se encarregam da distribuição. No entanto, sabemos que isso não é uma realidade.
As grandes plataformas se manteriam sem os veículos? Claro! E o risco de orkutizar e entrar em decadência? Isso se resolve ao tomar responsabilidade pelo conteúdo circulante – algo que as empresas de redes sociais, aparentemente, vêm tentando, sem sucesso, e começam a entregar os pontos. É importante lembrar da insistência com que as social tech giants afirmam que não são veículos jornalísticos e nem querem ser – obviamente, pois isso implicaria assumir a responsabilidade sobre algo que elas não conseguem gerenciar.
Jogar a responsabilidade sobre o conteúdo para o poder público significa onerar ainda mais o Estado – consequentemente, o cidadão -, atribuindo a governos inaptos uma tarefa crucial para manter estas plataformas operantes. Tanto a máquina estatal quanto as administrações públicas são inaptas a dar limite para os conteúdos das redes sociais simplesmente porque desconhecem os processos, porque os algoritmos são opacos e inacessíveis, porque o esforço de fiscalização é tão inviável que os próprios donos das plataformas já não conseguem mais lidar com o peso que isso representa.
As redes sociais se tornaram monstros, gigantes incontroláveis. Lidar com a humanidade, em tudo de bom e ruim que há nela, definitivamente, não é coisa para moleques de irmandades acadêmicas.
(2) Sim, as big techs devem ser responsabilizadas pela crise financeira nas redações
Uma forma de resolver o dilema das redes com as empresas jornalísticas é adotando a proposta – tão lúcida quanto transformadora – que vem sendo apresentada pelo presidente da ANJ (Associação Nacional de Jornais), Marcelo Rech. Ele próprio conta no vídeo abaixo (aos 59’36”):
“Vivemos um momento em que as grande plataformas digitais, em seus processos de construção de negócio, produzem uma poluição social. Não é a intenção delas, mas a poluição social – bolhas, fake news, desinformação, discurso de ódio – é o lado obscuro, o efeito colateral das redes sociais de forma geral. Quem tem a capacidade, a habilidade, a competência para fazer a limpeza dessa poluição é o jornalismo profissional. Tenho advogado que as grandes plataformas que produzem essa poluição social paguem uma taxa de limpeza. Quem limpa é o jornalismo profissional. A atividade do jornalismo deve ser remunerada, em parte, pelas plataformas de redes sociais. É como se elas estivessem produzindo uma fumaça ou despejando um produto poluente num rio e alguém tem a capacidade de fazer a limpeza desse rio. Nós fazemos a limpeza desse rio. É preciso criar agora uma taxa de limpeza da poluição social produzida pelos gigantes digitais.”
Marcelo Rech, presidente da ANJ
Como fazer isto é algo amplamente discutível. Mas o propósito maior inauguraria uma nova era para o jornalismo, de algum senso de justiça e ordem ao caos. Na proposta de Rech, qualquer tentativa das redes sociais em envolver governos na gestão de seus produtos, com a esperança de conter o movimento de regulação e taxação, resultaria ineficaz.
Veremos (ou faremos) isto acontecer?