Ricardo Gandour: ‘A pandemia deixou esse chacoalhão’

Ricardo Gandour: 'A pandemia deixou esse chacoalhão'

16 de março de 2022
Última atualização: 24 de agosto de 2023
11min
Márcia Miranda

16 de março de 2022

homem calvo de camisa azul e óculos, em ambiente de escritório mostra uma placa de ferro cinza
Ricardo Gandour mostra o clichê que guardou de recordação dos tempos de juventude, em que trabalhava no jornal do pai, em Nova Granada (SP)

O Café com Aner desta terça-feira, 15 de março, trouxe uma conversa com Ricardo Gandour.  Jornalista e engenheiro, Gandour ocupou cargos estratégicos em algumas das maiores empresas de comunicação do país, como Folha de S. Paulo, Editora Globo, Grupo Estado, CBN e Grupo Globo. Hoje é consultor em estratégias de comunicação e membro dos conselhos do Instituto Palavra Aberta, Columbia Global Center Brazil e Instituto Torna Voz.

No Café, o jornalista falou sobre suas observações nas mudanças das redações com a chegada das tecnologias digitais.

“A ideia é de refletir sobre o momento e sobre a vida, sem a pressão. Ouvir várias correntes de pensamento e entender o esse momento de mundo que está tão difícil para todos”, explicou a diretora-executiva da Aner e criadora do Café, Regina Bucco.

Relação com imprensa vem dos tempos de juventude

Ricardo Gandour entrou oficialmente para a imprensa aos 26 anos. A paixão nasceu cedo, já que seu pai era dono de um cinema e de um jornal em Nova Granada, na região de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo.  Aos 12, 13 anos, para ajudar o pai, Gandour trabalhava como revisor dos textos.

Aos 26, depois de trilhar um caminho como engenheiro, ele entrou como repórter na Folha de S. Paulo. Depois disso, nunca mais abandonou o jornalismo. Participou de mudanças estratégicas como a reformulação da redação do Estadão, em 2007. Na ocasião, a empresa buscava uma nova forma de organizar o conteúdo, já com olhos para o digital.

“O arranjo físico sempre foi uma característica muito forte do jornalismo. Nos jornais impressos, frequentemente, a gráfica era no subsolo do prédio. O prédio era organizado pelo fluxo do processo jornalístico. Chamávamos o ato de fechar a matéria de “descer” a matéria porque redação, publicidade, composição eram ligados por um tubo, onde se jogava a matéria para seguir para a impressão”, relembra.

Digitalização trouxe outro arranjo físico às redações

A chegada da internet e do digital exige que a comunicação entre as equipes seja mais rápida.  Percebendo esta necessidade, o time de trabalho de que Gandour fazia parte no Estadão resolveu alterar a conformação física da redação, incluindo uma formação já utilizada na Europa, que se chamava redação em estrela:

“O processo foi liderado pelo Roberto Gazzi junto com Chico Amaral. A gente vê que mexer no processo não era só mexer no produto, mas em todo o arranjo”, explica. “A redação em estrela colocava as equipes em círculos concêntricos. Em vez de ficarem mais próximos da primeira página do impresso, ficavam mais perto da criação da Home do site”, explica. “As editorias mais quentes ficavam perto da home as mais frias, mais distantes. Bastava girar a cadeira e conversar com o colega do lado”.

Com a pandemia, nova disrupção

Gandour destaca como importantes os cenários de adaptação das redações às realidades do mercado. Se nas décadas de 80 e 90 os espaços eram gigantescos – Gandour cita a redação do Estadão, considerada uma das maiores lajes de jornalismo da América Latina — com o enxugamento das equipes e a chegada da pandemia eles se tornaram desertos.

Na época da redação em estrela, entre 2009 e 2010, segundo Gandour, a tiragem em banca do Estadão era de 520 mil exemplares e a redação, borbulhante, com as equipes integradas, trocando informações, criando oportunidades de pauta.

“A pandemia desmonta essa lógica. Quando eu via os vídeos de redação vazia, enviadas pelo João Paulo Caminoto (ex-diretor de jornalismo do Grupo Estado), eu pensava: como é que fica essa lógica? A pandemia, em muitos setores de atividade, parece ter trazido o trabalho híbrido como irreversível, mas qual o impacto deste desarranjo físico presencial no processo jornalístico?”

Produção de material para meios digitais reduz necessidade de edição

Segundo Gandour, a chegada dos meios digitais ampliou o espaço para publicação e, assim, reduziu a quantidade de critérios para escolha do que cabe ou não publicar.

“Quando uma redação se ocupa em produzir uma edição que tem finitude (como os impressos), ela tem que tomar decisões de peso, de ocupação de espaço, decidir o que é mais importante para a primeira página, o que é destaque no caderno, alto de página, baixo, hierarquização… E esse arranjo mantém a redação em um nível de treinamento de avaliação que vai se refletir nos sites, redes, webinars. Mas essa avaliação tem possibilidade de desaparecer”, afirma. “Tudo se publica, tudo é tornado público. O ato de publicar ficou banalizado”.

Outro risco, desta vez por conta do trabalho à distância, obrigado pela pandemia, é a ausência da troca de informações que a redação, durante o funcionamento presencial, permite: o cafezinho entre os jornalistas, o “esbarrão” que ocasiona uma troca de informações entre os profissionais e leva a pautas mais amplas, que misturam percepções diferentes.

“O trabalho remoto acaba com o salão da redação, onde tudo acontece, onde as pessoas se encontram para o ambiente maravilhoso da troca. Independente do arranjo físico é preciso manter o arranjo lógico. Que fóruns eu posso restabelecer para manter, principalmente, o debate da edição?”, questiona.

“A pandemia deixou esse chacoalhão”

Veja algumas perguntas feitas pelos jornalistas a Gandour

Thais Reis Oliveira – CartaCapital – A dinâmica nos empurra para a produção pela produção… mas a realidade dos grandes veículos é muito diferente de pessoas que sobrevivem em veículos menores. Se vc fosse diretor de pequeno o que adaptaria para trabalhar em dinâmica menor?

“Lá na ESPM uma das disciplinas que dou é noticiário local. A gente estuda pequenos empreendimentos em cidades do interior. É possível aplicar o funcionamento jornalístico para 4 ou 5 pessoas: o ideal é alguém escrever e outra pessoa editar. Essa é a mínima segregação. Eu brinco com alunos para que evitem os dois papéis… Defendo que os principais fundamentos jornalísticos não devem depender do porte dos segmentos”.

Adélia Franceschini, diretora da Fran6 Pesquisa – Alguns veículos conseguem dar unidade e passar o posicionamento, mesmo trabalhando um em cada lugar. Mas sinto que os grandes jornais do brasil já fica mais complicado. Para um exemplo: a Carta Capital consegue em todas as publicações ter a unidade e posicionamento, assim como a Piauí. Guardam o perfil. Já nos grandes jornais, Estadão Folha, o Globo… eu não sinto essa característica no digital e mesmo no impresso hoje tão marcante…

“O problema não é o que está sendo editado…é no que não está sendo editado, que sempre foi fruto da conversa e da troca entre as equipes… daquilo que surgia entre pautas…

Thais – Como vocês têm feito para lidar com a dificuldade de gerir o tempo e coma a dificuldade de trazer para interação virtual essa vazão criativa das pequenas conversas…Como tem sido pra você vê?

Na pandemia, o rádio ainda tinha um pouco do remoto. Os comentaristas trabalharvam e falavam de casa, o rádio é uma colagem.. o consultor, o esportista…e foi o que menos teve impacto. O maior impacto foi nas redações grandes e revistas.

Mulher de cabelo louro e curto, blusa preta e óculos, batom vermelho, em ambiente de escritório
Regina Bucco, diretora-executiva da Aner
Regina Bucco, diretora-executiva da Aner – Como é olhar para redações de fora delas?

 “Estou há um ano e meio trabalhando com consultoria, focado em institutos, fundações… mas continuo fazendo aquela leitura comparada pela manhã, olhando as edições fechadas dos jornais, que dá a medida de como cada redação enxergou o noticiário do dia anterior. Me fascina a análise comparada”, conta. “Estando lá fora, vi como o jornalismo brasileiro é conectado à imprensa internacional… Nos veículos internacionais, as matérias têm mais fontes, o que significa que o jornalista teve mais tempo para produzir. O número de fontes é maior, mas a pegada, o jeito de fazer está muito alinhado. O jornalismo europeu é mais indireto, mais lento de consumir, mesmo nos canais digitais. O ritmo é mais lento, mais contido, um legado da mídia analógica”.

Mulher grisalha de óculos e blusa estampada vermelha e bege em ambiente de escritório
Adélia Franceschini
Adélia Franceschini – Acabando a pandemia, o que será o novo normal das redações?

“Meu palpite é de que haverá uma volta, porque isso passa a ser competitivo… As redações passam a receber visitas, ministros, informação privilegiada… a volta do físico vai predominar por isso”.

homem grisalho de óculos e camisa social branca em ambiente de escritório
Michel Brull
Michel Brull, presidente da Circullus – Minha pergunta vai em cima do teu livro. Você diz  jornalismo em retração… mas hoje há muito mais informação e todos têm a possibilidade de interpretar, o que torna a informação mais democrática…

“Sim, Michel o título Poder em Expansão, Jornalismo em Retração mostra uma pesquisa inédita que eu fiz sobre o enxugamento das redações e o avanço dos governantes nas redes sociais. E hoje, se você vê o governante nas redes sociais, lá em 2015, quando eu fiz a pesquisa, nem se imaginava onde iríamos chegar (…) A imprensa ainda é tem o poder de cunhar e comandar o noticiário, mas o poder relativo hoje é menor. (…)

Thais: Com essa ascensão das redes sociais e com o fato de a gente agora ficar competindo pela atenção das pessoas com todo tipo de produtor de conteúdo, eu sinto que a imprensa tem se esforçado para mimetizar certos aspectos desta dinâmica da criação de conteúdo. Você acha que isso é um caminho para que a gente volte a ter a atenção das pessoas ou o jornalismo corre o risco de se perder nessa jornada?

“Eu acho arriscado, perigoso mimetizar modismos e formatos que não tem a ver com o processo jornalístico: apuração, checagem, edição e apresentação de contextos para a sociedade. Não é à toa que o jornalismo e a ciência tiveram papel essencial na pandemia. A melhor decisão da humanidade é aquela baseada em fatos históricos, em dados e evidências (…) a roupagem do influenciador que bota a forma acima do conteúdo… isso é antigo… existe desde o jornal sensacionalista, o espreme e sai sangue. Isso é uma falha da resistência humana, dos nossos sentimentos mais primitivos, que o jornalismo não deve trabalhar para atender. Jornalismo deve trabalhar para promover civilidade na troca informativa. E não deve perder esse papel”.

Clique aqui para assistir a íntegra deste episódio do Café com Aner

O Café com Aner é uma iniciativa da Aner para unir jornalistas e debater temas importantes para o mercado jornalístico. O encontro acontece sempre às terças-feiras, a partir das 15h. Para saber mais sobre as vantagens de se associar à Aner entre em contato pelo email aner@aner.org.br. A programação do Café com Aner pode ser acompanhada pelas redes sociais Instagram, LinkedIn e Facebook Aner.

Márcia Miranda
Administrator