O DIREITO DE ACREDITAR NA MENTIRA

O DIREITO DE ACREDITAR NA MENTIRA

9 de agosto de 2019
Última atualização: 9 de agosto de 2019
Helio Gama Neto

ÉPOCA – 09/08/2019

CONRADO HÜBNER MENDES

“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. E conhecereis o mito, e o mito vos sequestrará.” (João 8:32, versão nova era)

Bolsonaro não é mentiroso, mas pós-mentiroso (na falta de melhor adjetivo). O filósofo Harry Frankfurt o chamaria de “bullshiter”, como chama a Trump. O mentiroso tem consciência de que mente e portanto conhece a verdade. O pós-mentiroso não estabelece relação com a verdade. Não tem a menor ideia do que é verdadeiro ou falso e só diz o que seu autointeresse manda. Seu autointeresse, Bolsonaro embrulha com o slogan “Nosso Brasil”. A distinção é crucial para descobrir como reagir: pode-se desmascarar e desmoralizar o mentiroso ao se provar a verdade; desmoralizar o pós-mentiroso é mais difícil, pois ele diz o que seus seguidores querem escutar e cria um laço afetivo e identitário com sua pessoa, independentemente dos fatos. Está blindado contra a verdade. Ou quase. No “quase” reside a esperança.

Quanta verdade Jair pode suportar? A pergunta não faz sentido. A verdade não o fere e o valor da verdade não o comove. Seu séquito trabalha para os interesses de Jair e de sua família. Jair dissemina falsidades por onde passa. Na Presidência, sua fala é mais solicitada e superou todos os seus recordes nestes meses: “Em 212 dias como presidente, Bolsonaro deu 233 declarações falsas ou distorcidas”, foi a manchete de uma respeitada agência de checagem. Ele dispara falsidades sobre o trabalho infantil, a fome, o clima, o desmatamento; sobre a violência e as mortes no trânsito; sobre as drogas, a homossexualidade e a pedofilia; sobre “infiltrações” e “núcleos de guerrilha” da esquerda, sobre a ditadura; sobre o que se passa em salas de aula e laboratórios; sobre agricultura e agrotóxicos. O que são a ciência e a Constituição quando ele pode invocar a Bíblia e seu “sentir”?

O que fazer? Pode-se criticar a ignorância voluntária e argumentar que o direito de acreditar na mentira não existe. Asimov já apontou para o perigo da crença de que democracia signifique “minha ignorância tem tanto valor quanto seu conhecimento”. Moynihan também ponderou que “todos têm direito à própria opinião, mas não a seus próprios fatos”. Há quem seja ignorante por contingências do destino, mas ninguém tem o direito de ser ignorante, de expressar ou latir a ignorância. Esta foi a observação de William Clifford, filósofo do século XIX: “Sempre, em qualquer lugar, e para qualquer um, é errado acreditar em qualquer coisa com base em evidência insuficiente”. Talvez seja uma filosofia exigente demais, pelo menos enquanto a ignorância for socialmente inofensiva. Mas o que dizer no contexto em que temos o poder de propagar a mentira, em escala industrial e segmentada, num segundo? A ignorância voluntária adquiriu um impacto público como nunca antes.

Mauricio García Villegas sugere um manual de autodefesa intelectual para “aliviar o desatino e a sem-razão”. Francisco Uribe, outro colombiano, defende que se manter em estado de alerta cognitivo, para evitar ser veículo transmissor da credulidade, é hoje uma das mais importantes virtudes que se devem perseguir. O crédulo renuncia cedo demais à remota possibilidade de ser livre. A liberdade não é de graça e não combina com desinformação e credulidade. Na nova era, a liberdade está em liquidação.

Talvez não seja só ignorância, mas algo ainda menos racional. Se o problema não é a verdade ou a mentira, mas os afetos, se nada disso é racional, as recomendações acima tornam-se inócuas. Proponho então uma oração para o culto de domingo, direto de João e Mateus para a nova era:

“Mito Nosso que não estais no céu. Esbanjar incivilidade com o diferente não vos libertará. Desmontar o Estado, portar arma de fogo e acelerar numa rua sem lei não vos libertará. Savanizar a Amazônia e combater o modo de vida indígena não vos libertará. Autorizar a polícia a matar, mesmo que branca a vossa pele, não vos libertará. Celebrar a tortura é o caminho mais curto para serdes torturado. Se não chegar a vós, a tortura chegará a vossa filha. Nem mesmo o bolso cheio vos libertará. E conhecereis o mito, e o mito vos sequestrará. Não vos deixeis cair em tentação. Livrai-vos do mal.”


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Helio Gama Neto