‘Vidas que Contam’ é jornalismo que inspira
ORBIS MEDIA REVIEW – 21/07/2020
Ana Brambilla
Silvia Bessa é dessas jornalistas raras na atualidade, cuja história de vida se mescla com a trajetória de um veículo. Durante 24 anos, o Diário de Pernambuco publicou reportagens em que Silvia traduziu a aridez do sertão nordestino em relatos de singular amabilidade. Relatos estes, aliás, que lhe renderam uma série de premiações, inclusive três conquistas do tradicional Prêmio Esso.
Silvia é uma especialista em gente. E por mais óbvio que assim devesse ser entre jornalistas, a solenidade com que essa pernambucana de 44 anos trata o ser humano é, em definitivo, fora dos padrões vigentes. Uma das tantas evidências de tal dedicação é um texto que ela publicou em 2014, celebrando a “generosidade das fontes”.
Quando Silvia deixou o Diário de Pernambuco, em abril de 2020 e em plena pandemia, todos que a conheciam compartilhavam de uma só expectativa: onde as histórias de Silvia aparecerão? Porque era óbvio que ela não deixaria de contá-las!
Assim foi até julho deste ano, quando Silvia lançou o canal Vidas que Contam, no YouTube. O nome do projeto é mais do que um jogo de palavras: as vidas mostradas por Silvia contam histórias que contam para nossas vidas, que lapidam a sensibilidade humana em tempos de tanta rispidez.
Queremos a história da pessoa por inteiro. Queremos transformar o coadjuvante no protagonista.
O tom doce, humilde e firme dos relatos de Silvia se aferra à garra empreendedora de quem busca emocionar, sensibilizar e informar com uma estrutura pequena, sem abrir mão do rigor jornalístico. Ah, e sem renunciar o caráter colaborativo das redes! Mesmo com tanta experiência, Silvia tem a grandeza de deixar o canal aberto ao público: “Se tiver uma boa sugestão de história, manda pra gente! Vou adorar a colaboração.”
Orbis Media Review – Quais são os seus objetivos com o canal Vidas que Contam, tanto sob o aspecto editorial (humano) quanto sob a ótica do produto?
Silvia Bessa – Sonho antigo, o canal Vidas que Contam tem como objetivo maior ocupar um espaço que para mim, enquanto consumidora de informações, faz falta: aquele para o jornalismo de personagem produzido em vídeo. Pesquisa realizada pela Cisco diz que ao final deste ano de 2020 cerca de 82% do tráfego da Internet será gerado por vídeo. Esse tráfego atende a um público de 80% dos usuários que afirmam preferir conteúdo audiovisual a ler um texto online. Em contrapartida, se você fizer uma busca por boas histórias de vida no YouTube, observa que não tem comunicadores produzindo este tipo de produto de forma independente – ou são poucos. Grande parte do que se vê é réplica do conteúdo produzido para grandes emissoras; outra, é conteúdo produzido por pessoas comuns, que têm relatos, mas que, como não são comunicadores, nem sempre têm o cuidado com a apuração. Claro, produzir este tipo de conteúdo com imagem não é fácil – requer uma infraestrutura operacional, ainda que pequena. É carro, equipamento, apoio técnico, mas jornalismo independente é isso.
Do ponto de vista do produto: eu atuava como repórter de impresso e de online em jornal e há mais de 10 anos me dedico a produzir histórias de personagens. Os que me acompanham esperam de mim este retorno, então achei que seria o momento de produzir o que sempre produzi, em uma plataforma que aponta cada vez mais para o futuro. Na minha opinião, existe um campo vasto para jornalistas explorarem, visando este tipo de produto.
Meu projeto está engatinhando, mas sonha grande. Logo o Vidas que Contam será multiplataforma. O canal de YouTube aparece como principal e primeiro eixo. O Vidas que Contam deve contar ainda com um site e um podcast. As plataformas podem ser complementares.
Esta pandemia transformou muito o consumo da informação. O volume de informação oferecido pelas redes sociais e web é cada vez maior, no entanto as pessoas querem se sentir seguras sobre a veracidade do que vêem e ouvem. A perfumaria perdeu valor; o internauta quer credibilidade no que é exposto na tela. A margem para dúvida foi reduzida. As histórias se tornaram menos plastificadas.
Orbis – Pergunto seus objetivos sobre “produto” também, porque hoje vivemos em overdose informativa e encontrar conteúdo de superação ou inspirador pode ser fácil no YouTube. Ainda que não tenham caráter jornalístico nem a mesma qualidade editorial de um trabalho feito por jornalista, eles estão lá. No que o seu canal buscará se diferenciar desses outros materiais?
Silvia – Acho que esta pandemia transformou muito o consumo da informação. O volume de informação oferecido pelas redes sociais e web é cada vez maior, no entanto as pessoas querem se sentir seguras sobre a veracidade do que vêem e ouvem. A perfumaria perdeu valor; o internauta quer credibilidade no que é exposto na tela. A margem para dúvida foi reduzida. As histórias se tornaram menos plastificadas. Grandes portais de notícias têm espaço dedicado somente às histórias de pessoas. O grande diferencial do canal Vidas que Contam é o nicho dele: trata-se de webjornalismo. Mais: jornalismo de personagens. Não será uma reprodução do estilo de fazer reportagem em jornal ou em televisão – tem seu próprio estilo, sua própria cadência. O canal traz conteúdo de gente real, depoimentos testemunhais que casam com o momento, documentos da realidade – e por isso mesmo estão além do circunstancial.
Orbis – Por que você nota que há demanda por esse tipo de conteúdo na atualidade? E aproveito para perguntar quem é o target do canal.
Silvia – É uma demanda subjetiva e estatística. E não é fenômeno do Brasil apenas, não. É mundial. O alvo principal é quem deseja se manter bem informado fora do modelo tradicional, que quer ver uma história com começo, meio e fim. Costumo dizer que o personagem, no modelo tradicional do jornalismo, é um ser descartável, um acessório, que entra com direito a uma fala ou duas e depois vai embora da matéria. O Vidas que Contam é uma espécie de carta de alforria do personagem… (risos meus). Queremos a história da pessoa por inteiro. Queremos transformar o coadjuvante no protagonista. Creio que o canal vai alcançar, em um primeiro momento, o público que está mais habituado a consumir histórias nessa plataforma audiovisual. Também alcança aquelas pessoas que têm empatia com a história das outras, que se preocupam com o que está ao nosso redor, a vida real de quem está ao nosso redor. Mas, pelo conteúdo, pode alcançar também um público mais geral, consumidor de jornalismo. Por enquanto, nesse comecinho do Vidas que Contam, a maior fatia do público está na faixa dos 35 aos 44 anos. Veja que há terreno a ser percorrido, audiência a ser ampliada e em tese alcança em diversas faixas etárias. Nossa tarefa inicial é ser descoberto.
Tenho a chance de contar histórias como a de um grande executivo de multinacional, como aconteceu com outro dia chegou na cidade de carro blindado e chorou ao me contar que viveu numa casa de taipa, assim como posso contar as histórias de uma mãe que enfrenta a fome no interior nordestino.
Orbis – Este parece ser um projeto solo. Você tem equipe ou algum financiador? Espera monetizar o canal? Como é sua rotina de produção?
Silvia – Tenho uma pequena equipe de freelancers. Uma jornalista que atua como videomaker nas pautas, Thays Martins; uma editora de vídeo e finalizadora, Aline Ramos, que atua em São Paulo e que conhece o projeto desde o embrião; e uma design, Simone Freire, que fez a marca e tem feito orientações sobre mudanças graduais necessárias para a imagem do projeto. Espero monetizar o canal, mas acho que o auto-sustento dele se dará por apoio de patrocinadores. Também como repercussão desta pandemia, penso que o foco do marketing corporativo mudou. O conteúdo vale muito e agregar a imagem a este tipo de produto, responsável, muitas vezes com olho no social, pode ser interessante para eles. Sobre a produção, o que posso dizer é que tem sido um início agitado: eu produzo e faço as reportagens. Gravo duas ou três vezes por semana porque estamos fazendo material para as próximas semanas. Apostei no mobile como meu maior aliado – um instrumento que ainda usamos pouco no Brasil. Roteirizo e discuto a edição final com a editora de vídeo, que é sempre muito sensível. Nas próximas semanas, devo aumentar o conteúdo, tanto em número de web reportagens quanto em entrevistas feitas em lives – também tendo boas histórias como pano de fundo. Estudo a possibilidade de abrir o canal há cerca de três anos e sempre esbarrei em questões técnicas. Leitores e amigos já me cobravam há tempos, com alguns eu conversava sobre o caminho, e eu protelava por achar incompatível com o jornal onde eu trabalhava, uma vez que também buscava personagens para lá. Saí do jornal, onde fiquei 24 anos, e tive grande aprendizado sobretudo com produção de reportagens especiais. Agora na pandemia resolvi dar a alavancada e, no conceito start-up, ir ajustando com o trem no trilho.
Orbis – Você já tem muita experiência, conhece muita gente e mesmo assim pede a colaboração do público com ideias de histórias. O que leva um profissional experiente se manter aberto aos inputs das audiências?
Silvia – Para quem faz jornalismo de personagens, essa troca é fundamental e penso que este conceito, esta abertura, sustenta o exercício da minha reportagem. É também o que dá capilaridade à produção. Com a ajuda de gente de universos tão diferentes, tenho a chance de contar histórias de um grande executivo de multinacional, como aconteceu com um que outro dia chegou na cidade de carro blindado e chorou ao me contar que viveu numa casa de taipa, assim como posso contar as histórias de uma mãe que enfrenta a fome no interior nordestino.
Orbis – Há vários casos de jornalistas que, ao se desligarem de empresas de mídia onde atuaram durante muitos anos, iniciam canal no YouTube. William Waack e Alexandre Garcia são exemplos, por mais que tenham perfis e circunstâncias tão diferentes da tua. Como vês este movimento? Como narrativas mais tradicionais convivem com youtubbers e suas transmissões do quarto?
Silvia – Acho que este caminho do jornalismo em voo solo será o de muitos outros colegas. A pandemia acelerou a migração para o digital. As empresas estão demitindo ou achatando salários, tornando as condições de trabalho muito ruins. William Waack e Alexandre Garcia têm como vantagens a massificação da imagem deles em TVs nacionais e estarem em eixo nacional. Eles apostaram no modelo comentarista, âncora, que é o que já faziam. Outros casos são semelhantes: o profissional fica no seu espaço, comentando, analisando. No meu caso, resolvi começar meus conteúdos fora de casa, como um repórter de rua faz. Vou entrevistar as pessoas. E aí temos algumas peculiaridades. Por exemplo, quando você chega para falar com alguma pessoa e se identifica como sendo de algum veículo, a recepção é uma. Você carrega a marca de uma empresa. Mas quando você diz que é um canal seu, para o YouTube, as pessoas ainda olham com um certo estranhamento…
Noto é que a abertura de canais como este meu, de webjornalismo, tem sido muito bem recebida pelo internauta. E, aos poucos, temos quebrado o preconceito dentro do próprio meio jornalístico. Tenho sentido isso de forma muito forte, algo que vem até com certa surpresa pelos veteranos. Mas venho recebendo grande incentivo e é um passo de cada vez. Os jornalistas estão “bivoltando” o pensamento. Noto isso claramente: se eu comento ou convido colegas a se inscreverem no Vidas que Contam citando-o como um canal de YouTube, sou recebida de uma forma. Se acrescento a palavra webjornalismo na descrição, sou recebida de outra forma. A cultura de aceitação de se fazer jornalismo numa plataforma como o YouTube é questão de tempo.