EXAME – 18/09/2019
Vanessa Barbosa
Todos os dias, às 10 horas da manhã, o executivo Felipe Meretti reúne sua equipe de 45 profissionais num escritório recentemente montado em São Paulo. Até o meio-dia, eles definem um plano de ação, enviado por WhatsApp para avaliação de seus colegas, os diretores das marcas da fabricante de bebidas Ambev no Brasil. Em menos de 1 hora, o retorno — positivo ou negativo — chega. Daí para colocar o produto final desse processo na rua é um pulo. Ou melhor, um post ou tuíte.
Meretti está à frente do primeiro estúdio de conteúdo digital próprio da Ambev, o Draftline, inaugurado em janeiro. É a décima agência da empresa a ser aberta no mundo desde 2016, quando a cervejaria AB InBev, dona da Ambev, estreou o modelo na Colômbia.
A criação de uma agência interna — em inglês, in-house ou house agency — está se tornando cada vez mais comum entre grandes empresas no mundo. Oito em cada dez companhias ligadas à maior associação de anunciantes dos Estados Unidos já fizeram esse movimento. Cinco anos atrás, a taxa era de 58%.
À medida que a experiência se consolida em suas matrizes, as companhias têm espalhado o modelo pelo mundo. Essas estruturas se dedicam a criar conteúdo digital em redes sociais, sites, blogs, além de anúncios e ações com influenciadores. De acordo com um estudo conduzido pela consultoria de mídia Zenith, o montante dedicado a mídias digitais girou em torno de 240 bilhões de dólares em todo o mundo em 2018, equivalendo a 40% dos investimentos globais em publicidade.
É algo que deve crescer. Até 2025, os consumidores estarão conectados a 20 bilhões de dispositivos digitais, quase três vezes a população global, conforme estimativa da consultoria McKinsey. “Mais empresas querem ter mais controle sobre como seus dados trafegam na rede”, diz Pedro Burgos, professor na escola de negócios Insper, de São Paulo.
A sensação de falta de controle sobre a própria imagem — e a urgência de agir a respeito — ganha uma proporção inédita na internet. Uma das razões é que, além de audiência, o consumidor também gera conteúdo relativo às marcas. Ali o cliente — para o bem ou para o mal — tem sua influência sobre a reputação das marcas potencialmente ampliada. Por isso, uma das atividades que as empresas trouxeram para dentro de casa é o monitoramento do que se diz espontaneamente em relação à marca nas redes.
A ideia é detectar pontos de alerta para guiar novos direcionamentos, além de averiguar o resultado de campanhas e balizar outras ações pontuais. Na Ambev, essa “escuta social” abriu, por exemplo, a possibilidade de interagir com haters, ou detratores.
Há poucas semanas, o estúdio identificou os 50 maiores críticos da marca Skol nas redes sociais. Em seguida, entrou em contato com cada um e enviou unidades da versão puro malte da cerveja, lançada em janeiro. Segundo a empresa, pelo menos momentaneamente, a ação conseguiu arrancar elogios de detratores de plantão.
Na internet, intervenções quase cirúrgicas como essa — ou campanhas em massa nas redes sociais — podem ter efeitos desastrosos se feitas de maneira atrapalhada. Por isso, a proximidade entre quem define a estratégia e quem a executa na ponta passou a ser percebida como fator essencial.
“O fato de poder chegar ao lado da pessoa que está trabalhando em seu projeto para aprovar ou alterar algo em tempo real poupa tempo e torna o processo mais eficiente”, afirma Renata Graner, gerente de desenvolvimento de marcas da fabricante de bens de consumo Unilever e editora da U-Studio Brasil, agência interna da empresa anglo-holandesa, inaugurada no país em 2017.
Dona de marcas como o sabonete Dove e o sorvete Kibon, e com orçamento anual para publicidade em torno de 9 bilhões de dólares no mundo, a Unilever, presidida pelo escocês Alan Jope — substituto do holandês Paul Polman desde janeiro —, inaugurou nos últimos três anos 18 U-Studios em 15 países, entre eles Índia e China.
Ao mesmo tempo, a empresa anunciou neste ano, sem detalhar os números, que vem aumentando desde 2016 o investimento no time interno de marketing, com novas contratações. A americana Procter & Gamble, maior anunciante do mundo — com um orçamento de propaganda da ordem de 10 bilhões de dólares por ano — e dona de marcas como o sabão em pó Ariel e a fralda Pampers, considera que as agências internas a ajudam a lidar com um novo desafio trazido pela difusão da comunicação por meio das redes sociais.
“A mídia digital continua a crescer e, com ela, há um lado sombrio”, disse Marc -Pritchard, diretor de marca da P&G, em discurso para cerca de 800 executivos de publicidade em Orlando, na Flórida, na reunião anual de uma associação americana de anunciantes, em abril. No lado sombrio, o executivo coloca problemas ainda sem solução, como a frequente aparição de campanhas publicitárias ao lado de mensagens de ódio e outros conteúdos indesejados em plataformas como a rede social Facebook e o serviço de vídeos YouTube, do Google (veja abaixo). É um fato que só reforça a urgência, dentro das empresas, de cuidar de perto da estratégia nesses meios.
PARCERIA COM AS AGÊNCIAS
No que se refere à relação entre empresas e agências de publicidade tradicionais, trata-se de uma mudança e tanto. Mas não é uma ruptura. Ao contrário, há uma cooperação entre os dois lados que leva à criação de uma nova forma de relacionamento. As equipes dos estúdios internos são mistas na maioria dos casos.
Ainda que o time da empresa dona das marcas comande o grupo, boa parte dos participantes vem de fora, das agências de propaganda. Entre os 45 profissionais da Draftline, 15 são funcionários da Ambev. Os demais são das agências Mutato e Soko, contratadas pela empresa. Todos atuam juntos no mesmo escritório. O que extrapola os conteúdos digitais, em geral, permanece intocado nas mãos de grandes agências, que também têm liberdade para executar campanhas digitais.
Na Unilever, todas as in-houses do grupo têm como parceira global a agência britânica Oliver, que atua exclusivamente com operações internas nas estruturas dos clientes e chegou ao Brasil em 2017. As marcas da Unilever negociam diretamente com agências como a WPP, a Interpublic e a Omnicom. “Não se trata de tirar trabalho das agências tradicionais e trazer para dentro de casa. Estamos falando de algo novo e que só cresce”, diz Renata, da Unilever.
Jope, presidente da Unilever: agências próprias em 15 países | Mike Pont/WireImage/Getty Immages
Uma análise feita pela Forrester Research, uma das mais importantes empresas de pesquisa de mercado e tecnologia no mundo, aponta que, apesar da tendência crescente entre grandes empresas, ainda falta maturidade às in-houses. “É preciso haver um esforço colaborativo. A divisão de responsabilidades entre profissionais de marketing, agências internas e externas garante relações mais produtivas”, escreveu num relatório Jay Pattisall, analista principal da Forrester.
O modelo híbrido visa garantir um frescor que o olhar de fora traz. “As transformações digitais abrem espaço para novos modelos, mas internalizar totalmente a operação de marketing e publicidade -poderia viciar o processo criativo”, diz Alexis Pagliarini, superintendente da Federação Nacional das Agências de Propaganda.
Anos atrás, a fabricante de alimentos e bebidas PepsiCo foi criticada justamente numa campanha que não havia passado por nenhum crivo externo. Em 2016, um anúncio do refrigerante Pepsi criado pela in-house da empresa, a Creators League, retratou Kendall Jenner, hoje a modelo mais bem paga do mundo, como líder de um grupo de manifestantes que desajeitadamente refletiam o movimento antirracista Black Lives Matter. A campanha gerou protestos e a empresa a tirou do ar poucos dias depois com um pedido público de desculpas. Se agilidade é fundamental para acertar na internet, para consertar um erro esse atributo se torna ainda mais importante.
UMA BRIGA QUE SÓ COMEÇOU
O embate público entre grandes empresas e plataformas digitais, como Facebook e Google, teve um desdobramento histórico no prestigiado festival de publicidade Cannes Lions, realizado em junho na França. Um grupo de 16 grandes anunciantes, como as fabricantes de bens de consumo Nestlé, Procter & Gamble e Unilever, aproveitou os holofotes para anunciar o movimento Aliança Global pela Mídia Responsável (em inglês, Global Alliance for Responsible Media).
A iniciativa também trouxe para a discussão grandes agências de publicidade e representantes do Facebook, do Twitter e do Google. O objetivo é combater os efeitos indesejados que vieram a reboque das mídias digitais: a disseminação de discursos de ódio, conteúdos impróprios e fake news — que colocam em risco a reputação das marcas presentes nessas plataformas. “Queremos deixar de reagir de forma individual e partir para um diálogo capaz de trazer passos concretos”, disse Rob Rakowitz, líder da iniciativa e -ex-vice-presidente de marketing da fabricante de alimentos Mars, participante da coalizão.
Nos últimos anos, anunciantes vêm demonstrando insatisfação com o que já chamaram de “lado sombrio” das redes. A P&G, maior anunciante do mundo, boicotou o YouTube durante mais de um ano, de 2017 a 2018, depois da exibição de seus anúncios ao lado de um conteúdo terrorista. Em fevereiro, a operadora de telefonia AT&T, a rede de lanchonetes McDonald’s e as fabricantes de bens de consumo Clorox e Nestlé deixaram a plataforma ao identificar que suas marcas apareciam junto a comentários impróprios em vídeos de meninas.
Outra crítica contundente diz respeito à “falta de transparência” nos dados de audiência das redes sociais e à necessidade de instituir auditorias externas. Há também brechas tecnológicas que permitem fraudes de robôs que fazem downloads e distorcem resultados de campanhas. A dimensão dessas questões cresce junto com o avanço das mídias. Projeções mostram que, pela primeira vez, neste ano as mídias digitais vão levar mais da metade do investimento total em publicidade no mundo. O que ninguém sabe é quando, e se, os problemas inerentes a elas poderão — e vão — ser mitigados.