Sem medo da crise: ao longo dos anos, O GLOBO se reinventou diante de desafios

Sem medo da crise: ao longo dos anos, O GLOBO se reinventou diante de desafios

29 de julho de 2020
Última atualização: 29 de julho de 2020
Helio Gama Neto

O GLOBO – 29/07/2020

Míriam Leitão

A economia não cresceu em 1925. Na série estatística, o número que aparece da variação do PIB é 0,0%. O país estava em crise econômica e política. Era o começo do fim de uma era, aqui e no mundo. Tempos de transição são inquietantes. Melhor não investir em hora tão imprevisível. A manchete da primeira edição do jornal que nasceu no dia 29 de julho de 1925 era econômica. “Voltam-se as vistas para a nossa borracha”. E de quem eram esses olhos sobre nós? De ninguém menos que Henry Ford, “o mais conhecido e mais opulento capitalista do mundo”. Ele queria instalar uma fábrica no Pará. O tempo nos permite contar que ele teve uma ideia grandiosa. E inexequível. A de fazer uma cidade no meio da floresta, ruas pavimentadas, iluminadas, hidrantes vermelhos, casas de madeira. As ruínas da Fordlândia ainda estão no meio da selva. Hoje, 95 anos depois, a Amazônia está de novo nas manchetes. Mas me adianto no tempo sem ter ainda explicado o meu ponto.

Um jornal que nasce entre crises, que enfrenta um golpe emocional antes de terminar seu primeiro mês, com a morte do fundador e que, aos 4 anos, passa por um colapso econômico global aprende algo. A não ter medo de crise. Os seus 95 anos se cumprem no meio de uma pandemia global, que jogou a economia na maior queda da sua história. No Brasil, ainda é pior. Aqui vivemos a estranha ausência da liderança federal. Entre um ponto e outro desse quase um século, o que se vê é a capacidade de sobreviver às crises. Mas o que foi aquele começo?

— O presidente era Arthur Bernardes, também conhecido como “o calamitoso”. Ele decreta o estado de sítio em 1924 nas revoltas tenentistas e vai prorrogando até 1926. Em 1925, acontece a Coluna Prestes/Miguel Costa — conta a historiadora Heloisa Starling, da UFMG.

Reflexões sobre cidadania:especialistas apontam quatro desafios dos próximos anos

Era o tempo de um presidente calamitoso, de crise política e econômica, quando Irineu Marinho decidiu iniciar uma nova empresa. Um jornal sobrevive quando atrai o leitor. Difícil não se sentir seduzido por uma matéria em grande destaque logo abaixo da manchete. “Desvendam-se os mysterios de um archivo secreto.” Nas primeiras linhas da reportagem, diretamente de Viena, o texto aprisiona quem o lê: “Os arquivos secretos da dinastia Habsburgo foram afinal abertos à curiosidade pública. É a revelação de séculos de intriga diplomática”. Ainda na primeira página, o jornal noticia que decidira ele mesmo tampar um buraco na rua. Não um qualquer, “o rei dos buracos”. “Um pequeno serviço prestado ao público.”

PUBLICIDADE

Pode parecer detalhe, um buraco apenas. Mas era o início da vocação de estar sempre ao lado da comunidade. Do Rio e do Brasil. Vocação que o jornal exibiria de várias formas. Com grandes concertos de música clássica nas ruas, com projetos de educação ou com o noticiário sempre atento aos reveses e às grandes esperanças nos planos econômicos. De novo, adianto-me no tempo sem explicar o contexto.

O Rio era uma cidade grande, a metrópole à beira-mar descrita por Ruy Castro. A maior cidade do país, centro comercial, capital política e mesmo assim não era no Rio, o berço do jornal, que estava o poder daquela Primeira República.

O “pacto oligárquico” sobrevoava o Rio e contrapunha dois polos: Minas e São Paulo. O economista Winston Fritsch, no capítulo “Apogeu e crise na Primeira República” do livro “A ordem do progresso”, organizado por Marcelo de Paiva Abreu, conta que havia vários focos de instabilidade nas décadas iniciais do século. O primeiro nascia das divergências entre São Paulo e Minas, mais frequentes nos anos 1920. O segundo era que os “estados intermediários” — Rio, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco — queriam mais poder. O terceiro foco era o descontentamento dos “políticos dissidentes, intelectuais e setores da imprensa com a natureza antidemocrática e centralizadora do regime”.

PUBLICIDADE

Este jornal nasceu em um tempo de dúvida e chega aos 95, de novo, em meio a incerteza. Fazer o quê? Navegar nas ondas de mudança, ser capaz de se reinventar, de mudar de ideia, de ver o leitor não como o cliente, mas aquele com o qual foi feita uma aliança. Essa tem sido a história.

“Esse é um dos poucos períodos da História republicana em que a sucessão de crises econômicas esgarça o tecido político além da sua possibilidade de resistência, ensejando não só um profundo redesenho das políticas econômicas, como das formas de organização do Estado.”

O parágrafo acima, escrito por Fritsch para descrever as primeiras décadas do século passado, soa perfeito para o atual momento. Aqui chegamos, com uma sucessão impressionante de crises que esgarçam nosso tecido político, social.

Contava este jornal 4 anos e alguns meses de vida quando se abateu sobre o mundo, e o país, a Crise de 1929. No dia 24 de outubro, a Bolsa de Nova York despencou. Aqui, afetou os cafeicultores. “Os fazendeiros paulistas foram muito imprevidentes gastando todos os seus lucros…”, alertava o jornal na primeira página. “Por intermedio do Banco do Brasil o governo concederá redescontos directos aos productores.” A recessão se estendeu por dois anos. O PIB fechou em -2,1%, em 1930, e -3,3%, em 1931. No primeiro ano daquela crise, o produto industrial caiu 6,7%, e o setor de serviços, 8,7%.

PUBLICIDADE

Foram turbulências inaugurais deste jornal. Ele as reportou como noticioso que é, e as superou como empresa. Nas décadas seguintes, cobriria fases de forte crescimento, duas ditaduras, dois calotes externos, superinflação, hiperinflação, sucessivos planos econômicos, um confisco dos ativos financeiros. Há 26 anos, apostou no Plano Real. Eu vi de dentro da redação.

Cheguei ao jornal em 1991. O país vivia um intervalo entre muitos planos fracassados. Ninguém queria um novo experimento. E assim, céticos, desembarcamos em 1994. A manchete de quase todos os dias era econômica. Era a emergência nacional.

Quem abrisse o jornal no dia 15 de junho de 1994 encontraria uma palavra acima da manchete da economia. “Real.” E, do lado, um calendário. “Faltam 16 dias.” Dia após dia, houve uma contagem regressiva da nova moeda. Não era trivial. Se o país entendesse, haveria chance. “Real, faltam 5 dias”, dizia no dia 26. Era a aliança com a comunidade que O GLOBO fazia na economia para vencer a hiperinflação. Ouviu as donas de casa, verificou preços, falou com especialistas, mostrou os riscos, explicou, noticiou.

Os arquivos fotográficos do jornal registram. Tanques na porta do Banco Central, carretas blindadas com o novo dinheiro atravessando o Rio, pacotes de notas embarcados em aviões. Foi a maior operação logística de distribuição de dinheiro. As notas de real foram entregues em cada canto do Brasil, para marcar uma nova era monetária, a da inflação de um dígito, realidade que o país não vira por cinco décadas. No dia 1º de julho de 1994, a manchete foi “Começa a guerra real x inflação”. E um encarte: “Guia do Real.” Entender aquele plano era meio caminho andado. Quando o jornal trocava em miúdos, era de novo “um serviço ao público”, a aliança que fizera com o leitor no primeiro número ao cobrir o buraco na rua.

PUBLICIDADE

O jornal está perto de completar um século. Com que fórmula ele chegará ao futuro? Com a mesma que o trouxe até aqui. Sem medo de crises, atento às notícias e atraindo o leitor. Como no número um. Vamos desvendar mistérios e ir atrás de arquivos secretos. Vamos seguir os olhos do investidor. Eles de novo miram a Amazônia. Vamos olhar as aflições das cidades. Vamos estar ao lado de quem nos lê. A tecnologia continuará mudando, mas o jornalismo sempre será a arte de informar, de contar uma boa história.


Warning: Undefined array key "" in /home/u302164104/domains/aner.org.br/public_html/wp-content/themes/aner/single.php on line 206

Warning: Trying to access array offset on value of type null in /home/u302164104/domains/aner.org.br/public_html/wp-content/themes/aner/single.php on line 206
Helio Gama Neto