Que lorota boa

Que lorota boa

4 de abril de 2019
Última atualização: 4 de abril de 2019
Aner

ÉPOCA – 04/04/2019

GUILHERME AMADOChegou às prateleiras nesta semana um livro que Jair Bolsonaro deveria pedir com urgência que um de seus ajudantes de ordem buscasse na livraria de Brasília mais próxima. Verdade, do queniano radicado em Londres Hector MacDonald, não é lá tão longo e certamente custa bem menos do que Bolsonaro tem gastado com o cartão corporativo. O livro, lançado no Brasil pela Objetiva, faria um bem danado ao presidente que, segundo um levantamento do site de checagem Aos Fatos, deu 131 declarações falsas ou distorcidas em seus 90 dias iniciais de mandato. Bolsonaro poderia fazer melhor: deveria distribuir um exemplar a cada um de seus ministros e também aos três rebentos que estão na política. O livro de MacDonald, um consultor de comunicação estratégica que mergulhou nos meandros da verdade num mundo em que a fidelidade aos fatos é guiada por holofotes e curtidas, daria ao governo boas diretrizes sobre o valor da verdade e sobre como pesam algumas mentiras.

Conversei com MacDonald na última semana, para uma entrevista que publico na coluna no site de ÉPOCA. Dizendo-se pouco inteirado do governo Bolsonaro, ele preferiu não analisar a relação do presidente com a verdade, mas observou que Bolsonaro fala de uma maneira que faz parecer ter muita certeza sobre o que diz. Sobre Trump, que acompanha mais de perto, MacDonald foi assertivo. “Trump parece profundamente despreocupado com a verdade. Ele a usa quando conveniente, mas reconhece que uma poderosa mensagem partidária, por mais falsa que seja, sempre seguirá adiante e repercutirá entre mais pessoas do que a verdade objetiva”, analisou.

Um dos artifícios preferidos de Trump ao mentir é o que MacDonald chama de verdades enganosas. São aquelas declarações verdadeiras usadas para dar uma impressão deliberadamente falsa da realidade. Trump assim o fez na campanha de 2016, quando afirmou que 92 milhões de americanos estavam desempregados. O número era verdadeiro, mas não da maneira como pensamos. Grande parte dos 92 milhões estava aposentada, estudando ou criando uma família. Somente 8 milhões de pessoas procuravam emprego, o que significava uma taxa de desemprego de cerca de 5% naquele momento. Trump estava encorajando as pessoas a pensar que a situação do desemprego era muito pior, mas não estava mentindo.

Bolsonaro tem usado esse e outros artifícios. Na última segunda-feira, no sugestivo 1º de abril, o Aos Fatos consolidou uma apuração que sua equipe vem fazendo desde o primeiro dia do governo do Mito. O levantamento mostra as distorções ou mentiras diárias que Bolsonaro contou, em quatro palcos: em discursos, em entrevistas ou em seus perfis do Facebook ou do Twitter. A média foi de 1,45 declaração falsa ou distorcida por dia. Infelizmente, como o trabalho não foi feito com os últimos presidentes, não há como fazer a comparação se Bolsonaro mente mais ou menos que seus antecessores.

Mente, sem dúvida, bem menos que seu ídolo Donald Trump. A última atualização de The Fact Checker, o serviço de checagem do jornal Washington Post, mostrou que, em 801 dias de governo, Trump deu 9.451 declarações falsas ou distorcidas (enganosas, para usar a terminologia de MacDonald). Uma média, portanto, de 11,79 informações falsas ou distorcidas por dia.

Curiosamente, na semana do Dia da Mentira Bolsonaro exagerou em sua relação conflituosa com a verdade. Quem mais apanhou foram os livros de história. Antes de embarcar para Israel, repetiu à TV Bandeirantes, sem ser corrigido, que o regime instaurado pelo golpe de 1964 não foi uma ditadura. “Temos de conhecer a verdade (sic) .Não quer dizer que foi uma maravilha, não foi uma maravilha regime nenhum. Qual casamento é uma maravilha? De vez em quando tem um probleminha, é coisa rara um casal não ter um problema, está certo? E onde você viu uma ditadura entregar para a oposição de forma pacífica o governo? Só no Brasil. Então, não houve ditadura”, concluiu.

Depois, já em Israel, repetiu o despautério de seu chanceler Ernesto Araújo, que diz acreditar que o nazismo é um ideologia de esquerda. Pouco antes, Bolsonaro visitara o centro de memória do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém, um museu público que lembra as vítimas e os combatentes do genocídio de 6 milhões de judeus pelos nazistas. O museu atesta que se tratava de um movimento de extrema-direita que, além de judeus, perseguia outras minorias, a exemplo de ciganos, homossexuais e … comunistas. Nem o vice Hamilton Mourão aguentou o chefe lisérgico: “De esquerda, é o comunismo, não resta a mínima dúvida”.

Supõe-se que, lá no fundo, Bolsonaro deva saber que 1964 inaugurou uma ditadura e que o nazismo, claro, foi um movimento de extrema-direita. Mente porque lhe interessa.

Ao fazer isso, agita a parte mais desmiolada de sua militância e desvia-se, por exemplo, de ter de explicar por que a negociação pela reforma da Previdência está no pé em que está.

Também são preocupantes algumas atitudes do governo na relação com a verdade. Há 50 dias, o Ministério da Saúde retirou do ar a página com dados públicos do Mais Médicos. As informações foram despublicadas após a Agência Lupa, também especializada na checagem de fatos e que conferia regularmente informações no sistema do ministério, ter pedido esclarecimentos à pasta sobre inconsistências dos números. Depois da pergunta da Agência Lupa, a página da Sala de Apoio à Gestão Estratégica saiu do ar. O ministério informou na ocasião que os dados estavam desatualizados — embora as últimas informações estivessem atualizadas com números da véspera. Até hoje, a página não voltou a ser publicada, o que impede a checagem de diversos fatos relacionados ao Mais Médicos.

O mesmo desapreço pela informação pública foi mostrado por Bolsonaro ao atacar novamente os dados do IBGE sobre desemprego. Insatisfeito com a pesquisa que mostrou que a taxa subiu para 12,4% em fevereiro, e que o total de desempregados voltou a superar a marca de 13 milhões, Bolsonaro voltou a atacar a metodologia, como fizera alguns meses atrás. Propôs uma contagem menos complexa, mas que simplesmente ignoraria todos os trabalhadores que não têm carteira assinada. A pesquisa do IBGE segue os parâmetros definidos pela Organização Internacional do Trabalho.

Uma nuance grave é Bolsonaro não se preocupar em se corrigir quando comete um erro — ou, nas palavras do embaixador alemão no Brasil, Georg Witschel, quando diz “uma besteira completa”, como a do nazismo ser de esquerda. A repórter Constança Rezende, do Estado de S.

Paulo, até hoje não recebeu um pedido de desculpas público (nem privado) de Jair Bolsonaro, que compartilhou em seu perfil no Twitter a postagem de um de seus militantes que deliberadamente deturpou o conteúdo de uma entrevista dada pela jornalista para fazer parecer que ela tramava contra o governo. A mentira, de tão amadora, foi facilmente rebatida. Mas Bolsonaro fez a egípcia.

O problema de mentir muito, sem pudor, é que aos poucos vai se perdendo a capacidade de criar verossimilhança. O caso do cheque de Fabrício Queiroz (lembram dele?) para a primeira-dama Michelle Bolsonaro é um exemplo. O Ministério Público do Rio de Janeiro até hoje não engoliu que Queiroz, ora um vendedor de carros, ora o artífice da rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro, estivesse só pagando um empréstimo ao pai do chefe. Foi isso que Bolsonaro disse. Mas os promotores fluminenses têm tido dificuldade em acreditar num presidente que mente em temas bem mais triviais.

Aner
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