Passarelas on-line são alternativa para o mundo da moda durante pandemia
CORREIO BRAZILIENSE – 19/06/2020
A tecnologia, nos últimos anos, esteve integrada à produção dos grandes desfiles de moda. Com a pandemia, as novas coleções passam a ser apresentadas de forma virtual, num novo formato de desfile. Transformações que devem ser acompanhadas de perto pelas revistas especializadas.
Manuela Ferraz
A moda sempre teve como uma de suas características a capacidade de se reinventar e transformar, mas, em um cenário de pandemia e isolamento social, essas palavras parecem ganhar ainda mais importância. Diversas marcas têm buscado se adaptar e criar soluções virtuais para viabilizar projetos e eventos.
Uma das grandes novidades são os desfiles a distância ou com um suporte tecnológico capaz de realizar apresentações em 3D, que desfilam as roupas sem estarem no corpo de ninguém, como fez a marca Hanifa ao desfilar sua recente coleção Pink Label Congo.
Para Kim Trieweiler, pesquisador de futurismo na Aerolito, as tecnologias já vinham ganhando mais espaço no mercado de moda e, nesse sentido, a pandemia pode ter acelerado a novidade. “Já faz algum tempo que as marcas estão mudando os formatos dos desfiles, muitas vezes optando em ficar fora de algumas edições das semanas de moda para promover eventos exclusivos para as pessoas compradoras. Outras, atuando em formato ready-to-wear, o que, em si, já é uma mudança grande em relação ao desfile enquanto recurso para uma marca de moda”.
No curso Futuro da moda, a Aerolito compartilha sua lente transversal para enxergar como a tecnologia está transformando a moda e o que guarda esse futuro. Kim adianta algumas visões: “Enxergo o futuro da moda sendo caracterizado por diversas quebras de paradigmas históricos, mas que ainda são vigentes. O mercado da moda tradicionalmente funcionou de uma forma bem sistemática, com datas específicas para lançamentos e etapas que precisavam ser respeitadas para um novo produto chegar às pessoas consumidoras. Analisando o mercado como um todo e observando as diferentes iniciativas que estão mudando as regras do jogo, me parece que, eventualmente, não teremos mais tantas regras assim nesse jogo”.
Iniciativas como a da Hanifa surpreendem, mas não fazem parte da visão de futuro da moda de grandes marcas, e sim do presente. “Recentemente a Tommy Hilfiger anunciou junto com a Stitch uma forma de digitalizar toda a coleção ainda na etapa de criação, o que facilitaria alterações nas peças e poderia suprir a necessidade de amostras. Agora, imagina se a empresa já tem a nossa coleção inteira digitalizada em função da criação, não fica mais fácil de usarmos para um desfile nesse formato?”, explica Trieweiler.
Kim esclarece que podemos olhar o futuro da moda através da lente do e ao invés do ou e que os desfiles presenciais e com modelos ainda terão seu espaço. “Da mesma forma como a aplicação da tecnologia tem o seu espaço, o trabalho das pessoas que atuam como modelos também. Em um momento em que a representatividade em suas múltiplas manifestações não para de ganhar importância — ainda bem — invisibilizar isso me parece algo que as marcas que estão conectadas de verdade com o futuro não vão fazer”, afirma.
Desfile no Instagram
Já conhecido no cenário brasiliense por suas edições presenciais, o Desfile Beleza Negra inovou ao realizar uma apresentação 100% virtual após o evento que estava marcado para 21 de março, dia internacional de luta pela eliminação da discriminação racial, ter sido cancelado por causa da pandemia do novo coronavírus.
O objetivo do evento on-line, segundo a idealizadora Dai Schmidt, foi reforçar a presença do negro no mercado da moda e incentivar modelos e pessoas a prepararem seus próprios looks, além de conscientizar sobre os diferentes padrões de beleza, moda, comportamento e ser uma ação de luta pelo fim do racismo. “Quando eu percebi que os modelos e estilistas estavam tristes, surgiu a estratégia do desfile on-line. Foi superlegal a ideia, além de muito importante por toda visibilidade que temos”, explica Dai.
O evento ocorreu no dia 1º de maio, no formato de live no Instagram @desfilebelezanegra e contou com a participação de modelos, estilistas e outros profissionais negros. “Como todos são negros e abraçam a causa, superapoiaram a ideia”, avalia a idealizadora.
A seleção dos modelos foi feita a partir de um convite por parte de Dai e a animação foi imediata. “Coloquei uma imagem chamando para o evento no grupo dos modelos e logo começaram a buscar mais informações para participar. A autoestima foi lá em cima. No fim, todos os modelos arrasaram nos looks, foram bem aplaudidos e receberam muitos elogios”.
Modelo, mãe solo e ativista do Movimento Negro, Lohany Kayná, 22, conta que essa foi sua primeira participação no DBN e que, desde então, eles têm dado suporte para sua carreira. “Foi ofertado workshop de passarela, mas não aconteceu devido à pandemia que nos pegou de surpresa. Mas foi interessante como o DBN se reinventou e aproximou mais os modelos. Sempre perguntam como estamos e propõem atividades que nos dão autonomia enquanto modelos e pessoas, como o desfile e a roda de conversa on-line com a Amanda Balbino”, explica ela.
Dentro do desfile on-line, os modelos tiveram autonomia para montar o próprio look, maquiagem e cabelo e, segundo Lohany, essa é a grande diferença de um desfile tradicional. “Pude mostrar o meu estilo pessoal na minha própria passarela. A gravação foi feita pela minha mãe, na nossa garagem. Pretas, pretos e pretes carregados de beleza e simpatia em uma passarela de fácil acesso porque bastava entrar no Instagram”.
Para ela, a edição do DBN tem uma importância especial para os participantes. “Mostra a diversidade das múltiplas belezas negras, rompe com os estereótipos e com o padrão estético vigente. Muitos dos nossos que nos veem acabam se identificando com a gente. Cabelo crespo, nariz largo, quadril largo nunca foi bem-aceito e estamos aqui para mostrar que nossos traços são belos e perfeitos. Vai ter trança, dread, turbante e pente garfo na passarela, sim”, conclui Kayná.
Gildo Mota de Santiago, 21, modelo e fotógrafo, cruzou as passarelas do Desfile Beleza Negra pela primeira vez e compartilha das visões de Lohany. “O DBN abrange muito mais do que um desfile, ele fala sobre uma história e sobre a importância de dar voz a um povo que é tratado como inferior pela sua cor de pele. O ato de desfilar em si é o resultado de todo esse processo que é trilhado por um longo período. Eu sou muito feliz pela oportunidade que tive e espero que todo o projeto tenha a grande proporção de reconhecimento que ele merece” afirma.
Ele, que sempre gostou de moda e arte no geral, havia investido duas vezes em agências de modelo de Brasília, mas não teve retorno. A oportunidade de desfilar pelo DBN trouxe o sentimento de empoderamento e realização pessoal. “Só de ter participado de um desfile on-line e me ver partilhando de um mesmo sentimento com pessoas que sentem a mesma coisa me deixou muito feliz”.
Para auxiliar a equipe na hora de montar os looks e gravar os vídeos, a designer de moda e dona da marca Nanã moda afro, Nicolly Primo, 21, foi convidada para dar dicas e acompanhar o processo. Ela participou do desfile pela primeira vez na edição de 2017 como ajudante de backstage e, na edição do ano passado, desfilou sua primeira coleção.
Além do desfile, ela passou a fazer vídeos para o Instagram do evento, em que dá dicas de moda. “Tento falar sobre o assunto de uma forma que conecte a moda e o modelos negros, que são pouco falados, como história de tecidos africanos, afrofuturismo. Eu não fazia isso antes, foi algo novo pra mim e foi ótimo, porque é uma forma de estar mais conectada com a área e falar de assuntos que gostaria de ter estudado mais na faculdade”, explica ela. Os vídeos são postados semanalmente e a gravação, produção e edição são feitas por Nicolly, em sua casa.
Ela afirma que sempre viu no DBN um importante projeto para movimentar o mercado de moda de Brasília e pela representatividade. “Como designer, acho válido porque sempre tive dificuldade de selecionar modelos que sejam negros em alguns castings, além da oportunidade que o projeto dá para pequenas marcas de estilistas negros. Pessoas negras contando suas próprias histórias, através de suas marcas e com modelos reais que representa isso. É isso, pra mim, que é a verdadeira representatividade”.
Segundo Dai, o evento atraiu visibilidade imediata e esse pode ser apenas a primeira de suas edições digitais. “Tivemos uma grande visibilidade e conseguimos passar a mensagem, que é o mais importante. Com certeza farei novamente se em 20 de novembro os eventos não puderem acontecer de forma presencial. Pretendemos realizar uma transmissão ao vivo pelas redes sociais no local, caso isso aconteça, o Espaço Renato Russo”, conclui Schmidt.
Fashion Weekend em casa
O Fashion Weekend Kids tem experiência de sobra quando se trata de eventos. Neste ano, eles realizariam sua 30ª edição presencial, mas o isolamento social provocou mudanças no planejamento e exigiu adaptação da equipe para produzir a primeira edição on-line, conhecida como Fashion Weekend Kids em casa.
Com o olhar para as novas experiências tecnológicas e unindo moda e entretenimento, essa edição será apresentada via YouTube nos dias 20 e 21 de junho e contará com apresentação de marcas como Cris Barros, Mini, Bimba por bianca Ranucci, L’été, Um mais um, Huggies e A.M Kids e um conceito visual inspirado no trabalho da artista Flávia Junqueira.
Segundo a empresária e idealizadora do FWK em casa, Ana Cury, as diferenças na produção de um desfile on-line são sentidas desde o planejamento. “São dois mundos totalmente diferentes. Enquanto no presencial nossa preocupação é o visual do evento através de cenografia, som, luz, no digital é puramente o protocolo de cuidados e rigor nas etapas. Nunca vi tanta planilha em 25 anos”, afirma.
Ela explica que o desfile será feito a partir dos vídeos gravados por crianças usando as roupas das marcas participantes. “Depois de entregarmos todos os looks e recebermos os vídeos de todas as crianças, faremos um vídeo único e específico para cada marca, totalizando seis desfiles no fim de semana. Estes desfiles serão transmitidos pelo YouTube no canal Fashion Weekend Kids e os convidados e familiares poderão curtir de suas casas”.
A ideia de manter o evento e transformá-lo em digital, inclusive, foi motivada pelos pequenos. Ana conta que eles já tinham provado as peças e estavam animados para o desfile presencial que ocorreria no mês de março, em São Paulo, e teve que ser adiado. “Este fato criou uma frustração nos convidados e, principalmente, nas crianças. Esperamos passar um tempo e, logo que as normas de higiene foram desenhadas, bolamos um processo para que as roupas chegassem até elas com segurança e que a experiência fosse cumprida. Com a participação da família, teremos um desfile com um propósito mais emocional que nunca”, esclarece a empresária.
Parceira do FWK há mais de 6 anos, a L’été adorou a ideia do desfile digital e uniu-se à experiência. “Acho que o evento foi pioneiro e ágil em pensar uma solução para a situação e conseguiu manter a essência do desfile, que é ser divertido e familiar. Estamos muito felizes em participar e já está sendo um sucesso”, explica Fernanda Schatamachia, 47, empresária e diretora da marca.
Nas passarelas de suas casas, as crianças convidadas pela marca usarão a coleção primavera, composta por leggings, bermudas, bodies e biquínis com estampas gráficas e coloridas. “A coleção tem uma inspiração esportiva e tecnológica, com peças práticas e confortáveis para brincar e ficar em casa”, afirma Fernanda.
Além dos desfiles, o FWK em casa oferece uma plataforma digital de marketplace com curadoria exclusiva. O site também disponibiliza conteúdos focados no universo infantil e da família com assuntos como saúde, gastronomia e entretenimento.
O projeto possui um viés de responsabilidade social que, segundo eles, faz-se extremamente necessário neste momento. Para manter a arrecadação de mais de 1.500 malhas de inverno para a Fundação Amor Horizontal, eles criaram um QRCode para doação que ficará disponível na tela de exibição dos desfiles. Além disso, a cada peça de roupa vendida por meio do site, outra será doada pela marca para pessoas em situação de vulnerabilidade.
O impacto social é uma das grandes expectativas de Cury para essa edição do evento: “Para as famílias, espero poder atender a centenas de crianças e seus familiares que se prepararam e tiveram o carinho de nos enviar vídeos lindos. Para o lado social, espero batermos todos os recordes de arrecadação ao longo dos nossos 15 anos e conseguirmos aquecer muitas famílias”.
Oportunidade
O DFB Festival é outra iniciativa que reúne moda, cultura e empreendedorismo em sua inédita edição on-line. Após reunir 42.000 pessoas durante os quatro dias de shows, desfiles, workshops, feira de empreendedorismo e gastronomia, em 2019, eles se propõem a refletir o momento global de formas de consumo dos produtos culturais e os rumos do próprio trade da moda este ano.
Com um line-up multidisciplinar, com atividades e programações no período de 1º/06 a 19/07, o DFB DigiFest 2020 mantém a missão de promover acesso de novos talentos ao mercado nos seus mais diversos segmentos.
Para o diretor-geral Cláudio Silveira, a necessidade é o melhor estímulo para a criatividade. Foi com esse pensamento que eles desenvolveram a edição digital. “O festival, como havíamos pensado, já não podia existir. Mas, como o evento é um dos principais motores criativos para a moda autoral do Ceará e do Brasil, havia o desejo de buscar novas alternativas e como vivemos a plenitude da era das redes sociais, pensamos em transformar esse veículo na principal plataforma de ações que poderiam, ainda que de outra forma, executar algumas das ações anteriormente previstas para o DFB”, esclarece.
Segundo Cláudio, o DFB Festival existe desde 1999 e surgiu como uma versão cearense de uma semana de fashion week tradicional, com foco 100% em moda autoral. Com o passar dos anos, evoluiu e abraçou o conceito de economia criativa, ampliou a atuação para a esfera da cultura e assumiu o formato de festival, agregando shows, dança, mostras de audiovisual, entre outros.
O DFB DigiFest traz uma versão on-line da programação presencial. Os 40 desfiles que estavam previstos na edição presencial abriram espaço para outras programações, uma vez que reunir dezenas de pessoas da produção iria contra as recomendações do governo de estado.
Em vez dos desfiles, eles buscaram outras formas de incentivar a moda autoral, como o concurso dos novos talentos, em que estudantes de nível superior e técnico de estilo e moda de todo Brasil puderam realizar suas inscrições até março. Agora, eles vivenciam a segunda etapa de avaliação do look-piloto enviado. “Adaptamos a competição para o formato on-line para não prejudicar as equipes de estudantes que se empenharam em produzir seus projetos. Nessa etapa, convidaremos uma banca de jurados on-line, composta por profissionais de todo o Brasil. A equipe vencedora ganhará R$ 5 mil”, explica o diretor.
No entanto, não descarta a possibilidade da realização de um desfile. “A vantagem de realizar um evento on-line que distribui sua programação durante dois meses é que, a cada momento podem surgir novas formas de produzir ações que, até então, não nos imaginaríamos capazes de realizar. Então, quem sabe, em julho, dependendo dos índices referentes à pandemia, possamos apresentar um desfile ou algo parecido”.
Outro projeto presente é o New Faces, que visa descobrir novos modelos. Co-realizado com a influencer Thyane Dantas desde 2017, as inscrições passaram a ser on-line este ano e podem ser realizadas até hoje (14/06). A avaliação do júri convidado e definição das três primeiras colocadas também foram adaptados para o formato digital.
O festival uniu forças com Enel para a doação de máscaras de proteção, que serão doadas a domicílios em áreas de vulnerabilidade social, localizados na região metropolitana de Fortaleza. A iniciativa é fruto da parceria com o Programa Enel Compartilha Empreendedorismo.
Para mais informações sobre o evento e inscrições nos concursos, acesse o Instagram @dfbfestival ou o site www.dfhouse.com.br/.
*Estagiária sob supervisão de Taís Braga