O suicídio de Caroline Flask e a culpa da imprensa
PORTAL DOS JORNALISTAS – 20/02/2020
Luciana Gurgel, especial para o J&Cia
Não é de hoje que a imprensa é demonizada no embalo da comoção provocada por desgraças envolvendo celebridades. Mas o suicídio da apresentadora Caroline Flack, anunciado sábado (15/2), provocou uma avalanche sem precedentes sobre os tabloides britânicos.
Aos 40 anos, ela tinha uma existência invejável. Linda, rica, vencedora do Strikly Come Dancing em 2014 e apresentadora do popular Love Island. O castelo ruiu em dezembro, Acusada de agredir o namorado em seu apartamento, foi afastada do posto e seria julgada em março, com risco real de ser presa. Não aguentou até lá.
Desde as primeiras horas de sábado as redes sociais foram tomadas por protestos contra os tabloides, em particular o The Sun. Foram inevitáveis comparações com a decisão do casal real Harry e Meghan de se refugiar no Canadá para fugir deles.
A segunda onda foi o boicote. Muita gente compartilhou campanhas propondo não comprar jornais sensacionalistas, deixar de segui-los nas redes sociais e desinstalar os aplicativos. Uma petição requerendo a passagem de uma lei apelidada de “Caroline’s Law”, tornando crime o assédio de uma pessoa pela imprensa, recebeu mais de 700 mil assinaturas em três dias.
Na mira dos protestos não estão somente os títulos, mas também seus jornalistas, muitos atacados pelas redes sociais. Uma situação que está virando rotina, a ponto de o International Press Institute ter criado um protocolo para as redações lidarem com assédio contra seus profissionais. São quatro etapas a serem seguidas pelos gestores de organizações de mídia que tenham sua gente sob ameaça online.
A culpa é só da Imprensa? – Depois que os ânimos serenarem, será hora de discutir em profundidade as responsabilidades. A imprensa é a única culpada pelo ato da apresentadora?
Para começar, os jornais não inventaram nada. Nem usaram meios escusos para ter acesso a informações particulares. O namorado agredido chamou a polícia, que ao chegar encontrou-o sangrando. O processo foi aberto pelo CPS (Crown Prosecution Service) porque o fato era público, mas ele também está sendo criticado por supostamente estar planejando um julgamento-espetáculo.
A notícia não ficou restrita aos tabloides. Toda a imprensa vem cobrindo o caso. Mesmo quem não compra esses jornais viu Caroline Flack deixando a corte depois de indiciada.
E não se pode esquecer das mídias sociais. O massacre que ela sofreu não foi apenas pelos tabloides, mas sobretudo pelas redes, esse território desregulado em que todos (inclusive anônimos) podem expressar opiniões, disseminar memes ferozes e agredir diretamente, dispensando jornais como intermediários.
Por coincidência, saiu na semana passada uma proposta preliminar sobre a regulação das plataformas digitais no Reino Unido, muito aguardada como resultado do Relatório Cairncross, sobre o qual falamos aqui há exatamente um ano (J&Cia 1.192, pág. 21). A impressão foi de que a montanha pariu um rato. Não foi confirmada a ideia inicial de se criar um organismo dedicado a fiscalizar conteúdo ofensivo, nem punições efetivas para as empresas que permitem sua propagação.
ITV na berlinda – Os holofotes estão se voltando também para os programas que expõem pessoas em situação de estresse ou humilhação. Trata-se do terceiro suicídio relacionado ao Love Island, da ITV, em 20 meses. E em 2019 ano o apresentador Jeremy Kyle, da mesma emissora, foi afastado porque um participante de seu show tirou a própria vida depois de submetido a um detector de mentiras para responder sobre traição conjugal.
Programas assim sempre existiram. Mas a combinação com as mídias sociais, em que pessoas podem se unir para atacar um indivíduo ali exposto, amplifica o impacto e está se revelando capaz de criar condições para atos extremos.
Dymond, o personagem do programa de Kyle, era um anônimo sem recursos. Flack era uma famosa com assessores e advogados. Mas ambos sucumbiram a esse coquetel fatal. No caso dela, com o agravante do pavor de ser mandada para trás das grades.
Parece haver mais culpas nessas histórias do que apenas a da imprensa, ainda que os tabloides mereçam uma uma revisão em suas práticas.