O que as blockchains já fazem (e o que ainda podem fazer) por nós
ISTOÉ DINHEIRO – 15/12/2019
Olle Widén
Para quem não é da geração Spotify, o conceito de conexão ponto a ponto ou peer-to-peer, soa um tanto familiar. Nos anos 1990 usei o Napster e o Bit Torrent para baixar músicas e filmes, tendo acesso às últimas novidades e fugindo dos preços das gravadoras ou do calendário dos distribuidores de cinema. Esses aplicativos, basicamente, montavam uma rede descentralizada para compartilhamento de arquivos. Na década seguinte, a combinação dessa ideia com um sistema de pagamento causou um terremoto na indústria financeira.
Quando surgiu em 2009, o Bitcoin foi encarado com o mesmo ceticismo de experiências anteriores de se criar uma moeda eletrônica não-soberana. Dois anos depois, a paridade do Bitcoin era de 1:100 em relação ao dólar. Argumentou-se que estávamos em outra bolha especulativa do capitalismo, como a das tulipas no século 17, das empresas pontocom no final do século passado ou das hipotecas nos Estados Unidos, em 2008. Entre 2014 e 2016, o valor do Bitcoin despencou dos US$ 1 mil para US$ 200. Foi aí que o mercado passou a prestar mais atenção na tecnologia por trás da criptomoeda do que na moeda em si. As violentas oscilações posteriores não ajudaram também.
Mas afinal, o que é blockchain?
De acordo com Don e Alex Tapscott, autores do livro “Blockchain Revolution”, trata-se de um registro digital incorruptível de dados que podem ser programados para gravar não apenas transações financeiras, mas virtualmente qualquer coisa de valor. Desconstruindo o nome: essa série de dados gravados (blocks) estão ligados uns aos outros por princípios de criptografia (chain).
Don Tapscott explica o conceito de Blockchain
Dito de maneira simples, suponha que uma pessoa inicie uma transação criando um bloco, que é verificado por centenas, milhares de computadores; completada a verificação, o bloco é adicionado à corrente, gerando não apenas um registro único, mas um histórico único daquele registro. Falsificar um simples dado exigiria mexer com aquele bloco em milhões de computadores ao redor do mundo SIMULTANEAMENTE, o que é virtualmente impossível.
A tecnologia está escorada sobre três pilares:
Sua natureza descentralizada
A transparência dos dados
Sua imutabilidade
Essas características transformaram a blockchain numa espécie de nova Internet, abrindo novas portas imaginárias para inúmeras aplicações.
Talvez o que torna as blockchains mais atraentes seja o custo de transação ser zero. Ou seja, ela não só permite armazenar e transferir moeda como tem capacidade de substituir modelos de negócios que cobram uma pequena taxa para realizar a transação. Uma companhia aérea não precisaria do cartão de crédito; ela poderia vender a passagem diretamente aos clientes.
De forma análoga, os artistas poderiam eliminar intermediários como o Spotify de que falamos no início desse artigo, lojas virtuais como o iTunes e, claro, as gravadoras. Os músicos e escritores conseguiriam vender diretamente para os consumidores tornando plataformas de streaming ou magazines virtuais como a Amazon irrelevantes.
Há muitas projeções sobre os usos potenciais da tecnologia, mas tudo depende da construção de aplicações que atuem como um layer acima da base, que são as blockchains. Em alguns casos, o trabalho já está mais adiantado, principalmente após a criação do Ethereum, plataforma de blockchain de código aberto.
Um relatório da consultoria Statista projeta que o mercado de tecnologia de blockchain vai explodir nos próximos anos e pular de US$ 2,2 bilhões em 2019 para impressionantes US$ 23,3 bilhões em 2023, com o setor financeiro ainda liderando o desenvolvimento, com uma fatia de 60%.
Algumas aplicações já são realidade:
Os smart contracts
Os contratos registrados em blockchain cumprem cláusulas de forma automática quando certas condições são preenchidas, o que torna mais rápida, eficiente e barata a execução desses contratos em relação ao método tradicional. Ele permite colocar uma ordem de compra ou venda de uma ação na Bolsa quando o papel atingir determinada cotação.
O próprio sistema garantidor das transações de títulos pode se tornar mais eficiente e seguro, permitindo que sejam negociados durante mais horas ao longo do dia. Existe uma série de estudos para facilitar as transações internacionais dentro da União Europeia, inclusive com países que não utilizam o Euro como a Dinamarca e a Suécia.
Os usos dos smart contracts, no entanto, são mais amplos e podem beneficiar tanto empresas como consumidores.
Eletrodomésticos com Internet (a tal Internet das Coisas) poderiam autodetectar defeitos, o que tornaria mais rápido o processo de reparos. O seguro do carro registraria em um contrato inteligente ampla gama de informações, como velocidade, condições de tráfego e climáticas, rotas e estilo de direção, o que tornaria a determinação dos prêmios muito mais precisa.
Economia compartilhada
Empresas como Uber e AirBNB deixaram bastante claro o potencial disruptivo da economia de compartilhamento. Mesmo sendo players novos no mercado, essas empresas estão ameaçadas. Se hoje um passageiro precisa da plataforma do Uber para fazer o match com um motorista, a tecnologia ponto a ponto eliminaria essa necessidade, tornando o serviço totalmente descentralizado.
Já existe nos Estados Unidos uma plataforma baseada em blockchain chamada OpenBazaar que permite vender e comprar direto de outros usuários, sem taxas de transação como ocorre no eBay, por exemplo. Num ambiente desses, cada um precisa zelar por sua reputação de forma muito mais cuidadosa do que se faz hoje no eBay, Mercado Livre ou mesmo no Uber.
Democracia e governança
Características intrínsecas das blockchains, como a transparência e o acesso público, podem transformar completamente a maneira como funcionam as democracias hoje. As urnas eletrônicas ou de papel podem virar coisa do passado. O governo cria uma blockchain para salvaguardar a transparência e evitar fraudes. Com contratos inteligentes, os eleitores habilitados recebem tokens e têm o voto registrado na blockchain.
Parece coisa do futuro? Pois saiba que já foi feita uma experiência na Suíça em 2018.
Disputas de terra serão coisa do passado. A agência governamental sueca encarregada de registros de propriedades foi pioneira em criar um sistema para transferência de títulos. O primeiro teste oficial foi feito durante um seminário e o processo levou alguns minutos. Isso mesmo, na Suécia, um país digitalizado onde o prazo entre a assinatura do contrato e a escritura definitiva pode levar de 3 a 6 meses.
Os smart contracts também podem ajudar os governos a se tornarem mais eficientes na concessão de licenças a comerciantes, por exemplo.
Retomando o controle da identidade
Atualmente a identidade do usuário de Internet é relativamente precária e as tentativas de roubo de dados pessoais e bancários se torna cada vez mais sofisticada.
Os registros compartilhados oferecem maneiras mais sofisticadas de provar quem você é, trazendo a possibilidade de ter todos os documentos de identidade digitalizados; até mesmo seu prontuário de saúde, que poderia ser compartilhado mediante autorização dos médicos
Aqui no Brasil, a Casa de Saúde São José fez uma parceria com o 5º Registro Civil de Pessoas Naturais da Cidade do Rio de Janeiro e emitiu a primeira certidão de nascimento utilizando o sistema de uma startup chamada Growth Tech. Durante os testes, o processo levou 15 minutos em média. Atualmente, mesmo nas maternidades que possuem um cartório, pode levar até quatro horas dependendo do movimento.
Segundo Eric Pulier, CEO e fundador da vAtomic e especialista em blockchain, “a identidade vai voltar a ser controlada pelo indivíduo, que decidirá como compartilhá-la de acordo com o que julgue ser melhor para ele e não da forma com que o Google, Facebook ou outra empresa decida explorá-la”.
Isto, obviamente, tem um profundo impacto na indústria do marketing digital. Por exemplo, o Brave browser promete modificar a forma dos usuários interagirem com propaganda online. Em vez de ser assediado por todo tipo e formato de anúncio, a pessoa pode optar ver determinadas peças e receber BATs (Basic Attention Tokens) para os anúncios com os quais interagem. É uma forma nova de publicidade em que se negocia a atenção online em vez de espaço para potencial venda de anúncios.
Operando como registros digitais descentralizados, a tecnologia de blockchains vai reduzir a disseminação de informações corrompidas, elevar o grau de transparência, multiplicar a eficiência de incontáveis processos e eliminar intermediários em quase todas as indústrias.
Assista ao documentário produzido por Ian Khan “Blockchain City” sobre o futuro das cidades
Como diz Ian Khan, um dos mais respeitados futuristas de tecnologia: “Blockchain é um mecanismo para obrigar todos a atuarem com o maior grau de accountability” (mal traduzido para o português como responsabilidade). “Nada de transações perdidas, erros humanos, de máquinas ou mesmo uma operação feita sem o consentimento de uma das partes envolvidas.”
Olle Widén é CEO e Co-fundador da FinanZero, fintech de capital sueco que opera como correspondente bancário online para buscar empréstimos junto a instituições financeiras (marketplace).