EXAME – 18/06/2020
Marina Filippe
Pandemia do coronavírus reforça necessidade de discutir equidade de gênero no trabalho — não apenas pela urgente questão social, mas por ajudar na economia.
A pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2), causador da síndrome respiratória covid-19, está mudando a vida de todos. Com o distanciamento social, as dinâmicas de trabalho se alteram, as crianças deixam de ir à escola e até o ato de fazer compras está diferente. Nesse cenário, especialistas apontam que as mulheres são especialmente afetadas. Um dos motivos é a atribuição dos serviços domésticos não remunerados, ou seja, os cuidados da casa e da família, que se tornam ainda mais intensos. Para elas, em 2019 esse cuidado tomou 21 horas semanais, uma diferença de cerca de 10 horas a mais do que os homens. Agora, com a retomada econômica e com a reabertura gradual das cidades brasileiras, a dinâmica pode ficar ainda mais afetada, já que muitas dessas mulheres precisam retornar ao trabalho enquanto os filhos não voltarão à escola.
“Os executivos dizem sentir dificuldade em promover mulheres por atribuir a elas o cuidado da casa, e a pandemia evidencia isso”, diz Regina Madalozzo, coordenadora do núcleo de estudos de gênero do Insper. O modo cultural como o trabalho doméstico é dividido entre homens e mulheres parece impactar apenas o microuniverso familiar, mas o Fundo Monetário Internacional estima que o produto interno bruto global cresceria pelo menos 4% se o trabalho não remunerado fosse mais bem distribuído. Isso aconteceria porque elas teriam maior participação no mercado de trabalho e, consequentemente, maior movimentação econômica, gerando ganhos para todos. Assim como na divisão de tarefas domésticas, o que acontece dentro de casa passa a impactar toda a sociedade. Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Ceará, em parceria com o Instituto Maria da Penha, estimou que o Brasil perde 1 bilhão de reais ao ano com a violência doméstica por causa de absentismo das funcionárias e impactos na saúde. No país, essa violência cresceu 40% em abril em comparação ao registrado no mesmo mês de 2019. “O trabalho da mulher, remunerado ou em casa, é necessário para a sobrevivência de todos. E, quando o devido valor e respeito forem dados, ele poderá apresentar desenvolvimento social e monetário”, afirma Madalozzo.
Uma das evidências mais claras da força da mão de obra feminina está atrelada à pandemia do coronavírus. No setor de saúde global elas representam 70% da força de trabalho. No Brasil, as mulheres são 65% dos mais de 6 milhões de profissionais; e na enfermagem, 85%. Uma dessas mulheres na linha de frente é Lucia Santos, supervisora de enfermagem na Unidade de Tratamento Intensivo e Semi-Intensivo do Hospital São Luiz, no Morumbi, em São Paulo. Ela fez carreira no hospital, onde trabalha há 19 anos, e está atuando diretamente no enfrentamento da covid-19 ao gerenciar cerca de 280 enfermeiros. Desde o início da pandemia, toda a sua rotina mudou, da higiene antes de entrar em casa ao número de horas trabalhadas, que por vezes aumenta quando muitos funcionários acabam faltando por estresse, contaminação ou algum imprevisto. “A pandemia mudou nossos hábitos e trouxe uma preocupação ainda maior com o cuidado das pessoas”, diz.
Santos é também a maior provedora de renda da casa, onde vive com a mãe, um sobrinho e duas irmãs, que tiveram o salário reduzido. Ela faz parte do contingente de 45% das famílias brasileiras chefiadas por mulheres. No estado de São Paulo, cerca de 40% dos grupos familiares seguem esse modelo e, ainda assim, com rendimento 30% inferior ao de famílias chefiadas por homens. Isso acontece porque a média salarial entre homens e mulheres ainda é bastante desigual, o que afeta a permanência delas no mercado. Para ter uma ideia, os homens ganham cerca de 47,2% mais do que as mulheres com o mesmo nível de formação. “Quando as mulheres precisam trabalhar mais em casa, trabalhar mais na empresa e ainda assim ganhar menos, o risco de desistência do emprego é maior”, diz Madalozzo. Reduzir a disparidade salarial é, mais uma vez, além de uma questão social, um ganho econômico importante para o mundo pós-pandemia.
Uma pesquisa da consultoria e auditoria PwC estima que a equalização dos ganhos entre homens e mulheres nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) pode aumentar o produto interno bruto em 6 trilhões de dólares. Já o Fundo Monetário Internacional aponta que a eliminação das desigualdades de gênero no trabalho, o aumento do tempo de permanência das mulheres no emprego e a chegada a posições de liderança beneficiariam toda a população, com um aumento de 35% no PIB global. “As habilidades e os talentos das mulheres têm sido subutilizados. Os líderes precisam conhecer e erradicar as fontes de viés sistêmico dentro de suas organizações para permitir que as funcionárias cresçam e beneficiem a todos”, diz Julie Nelson, professora de economia feminista na Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos.
A desigualdade de gênero, porém, está longe de ser eliminada. Um relatório do Fórum Econômico Mundial, divulgado em dezembro, calcula que, se o ritmo atual for mantido, serão necessários 99,5 anos para que isso aconteça. Houve uma pequena melhoria em relação à pesquisa anterior, que apontou 108 anos como prazo para a equiparação completa. A pandemia, no entanto, pode frear esse avanço. “A covid-19 escancarou as desigualdades e vai nos fazer dar passos para trás caso medidas econômicas e sociais robustas não sejam tomadas por empresas e governos”, diz Luiza Nassif, pesquisadora de igualdade de gênero e economia no Levy Economics Institute of Bard College. No Brasil, a taxa de desocupação das mulheres no primeiro trimestre foi de 14,5%, ante 10,4% dos homens. O recorte também é pior para negros do que para brancos, com taxa de desocupação em 15,2% e 9,8%, respectivamente, independentemente do gênero.
A discussão entre equidade de gênero e equidade étnico-racial está intimamente ligada. Basta olhar para os números das empregadas domésticas — bastante afetadas na pandemia — e que formam grande parte da rede de apoio das famílias brasileiras. Dos 5,7 milhões de mulheres na função, 3,9 milhões são negras. “Essas mulheres são a base da economia brasileira e precisam ser puxadas para cima pelas mulheres brancas e pelos homens”, diz Luana Génot, diretora executiva do ID_BR — Instituto Identidades do Brasil. Com base nisso, Génot fundou o instituto para promover a equidade racial dentro das empresas por meio de metas e indicadores sólidos. Um desses meios é o selo Sim à Igualdade Racial, que reconhece as companhias que promovem a equidade por meio de empregabilidade, educação e engajamento. Ainda assim, é possível identificar um estágio inicial dessa discussão dentro das companhias. A pesquisa Saúde Financeira das Mulheres Negras na Pandemia da Covid-19, realizada por meio de uma parceria entre o ID_BR, a Comunidade Empodera, a organização EmpregueAfro e a Faculdade Zumbi dos Palmares, identificou que 20% delas estão alocadas em empresas nacionais, 7,8% em multinacionais e 72% são empreendedoras. “A pandemia mostra como ainda há pouca inclusão e como as empresas são importantes na promoção da mudança”, diz Génot.
A falta de oportunidades incentiva parte das mulheres a empreender, mas nem sempre por necessidade estritamente financeira. Como Luana Génot, foi empreendendo por opção e paixão que a paulistana e psicóloga de formação Maitê Lourenço se encontrou. Em 2010 ela começou uma plataforma online de gestão de carreira para ajudar as pessoas a elaborar currículos, entre outras iniciativas. Com o aumento da demanda, ela percebeu que estava, na verdade, criando uma startup, e passou a frequentar eventos de tecnologia, nos quais encontrou um ambiente predominantemente masculino e branco. Com o passar dos anos, Lourenço estruturou a BlackRocks, empresa sem fins lucrativos que tem como objetivo promover a ascensão de pessoas negras na tecnologia por meio de educação e aceleração.
Desde sua fundação, em 2017, foram cerca de 3.000 capacitados gratuitamente — os eventos são patrocinados por companhias como Facebook e Oracle. “Escolhi empreender porque vi a oportunidade de criar algo benéfico economicamente para as pessoas negras, que socialmente têm mais dificuldade de estar inseridas em determinadas áreas do mercado”, diz. Desde então, Maitê Lourenço tem sido reconhecida em premiações e palestras no Brasil e no mundo. Aos poucos, as empresas estão sendo forçadas a olhar para o impacto da equidade racial em seus negócios. O Instituto Locomotiva estima que os negros — quase 56% da população brasileira — movimentem 1,7 trilhão de reais ao ano no país. Lourenço também busca o equilíbrio de gênero entre os mentores. Em um evento online que acontecerá em julho, por exemplo, 45% dos palestrantes são mulheres.
A demografia não explica a baixa participação feminina no mercado de trabalho. Por aqui, as mulheres com mais de 14 anos — idade de jovem aprendiz — são 52,4% da população brasileira, mas representam 43,2% do mercado. A ausência delas se deve a diferentes fatores, como cultura patriarcal e falta de programas de incentivo nas empresas, especialmente nas profissões consideradas majoritariamente masculinas. No setor de tecnologia, 75% das vagas são ocupadas por homens. Ainda assim, o Brasil tem representantes da liderança feminina nessa área. Além de Lourenço, um exemplo é Cristina Palmaka, presidente da SAP desde 2013 e primeira mulher a assumir essa posição na empresa no Brasil. Segundo ela, um dos segredos de seu sucesso, além de contar com uma rede de apoio, é a ousadia de provocar e aceitar desafios, como fez ao ser promovida em 2006, no nascimento de sua filha. “Percebi que não sou o único exemplo, mas que poderia mostrar às meninas e às mulheres as possibilidades de crescimento na carreira”, diz. Sob seu comando, a SAP desenvolve ações como formação de grupos de diversidade e programas de quebra de vieses inconscientes para homens e mulheres, com o objetivo de ajudá-las a chegar ao topo.
A empresa estipulou globalmente a meta de ter 25% de mulheres em posição de gerência até 2017, o que aconteceu com seis meses de antecedência. Hoje, na subsidiária brasileira as mulheres são 35% da força de trabalho total e 25% estão na liderança.
Algumas empresas já perceberam que ter mulheres em cargos de chefia pode ser um diferencial competitivo. Uma pesquisa da consultoria McKinsey mostra que companhias com maior equidade de gênero entre os líderes tendem a ter resultado financeiro 25% maior do que as demais. Na realidade atual, porém, para cada 100 homens promovidos a cargos de gestão, 72 mulheres conseguem o mesmo reconhecimento. “A liderança tem papel importante na valorização das mulheres, e também as próprias mulheres precisam incitar ações afirmativas”, diz Sofia Esteves, presidente do Grupo Cia de Talentos. É por isso que elas, quando chegam a cargos de direção, costumam ajudar as outras. Rachel Maia, presidente da Lacoste no Brasil, formou dois grupos de executivas para fomentar a troca de ideias e melhorias nos negócios. Para ela, é essencial ter uma rede com a participação de homens e mulheres que impulsione a força de trabalho feminina. “Quando as mulheres apoiam umas às outras, as oportunidades crescem, e os homens também precisam participar da conversa”, diz. Outra dica da executiva é sempre se oferecer para o trabalho.
Mulheres se candidatam a 20% menos vagas de emprego do que os homens por não se acharem preparadas. “A mulher tem de ser a precursora de sua própria história e, com resiliência, deixar uma forte marca no espaço que definiu estar”, afirma Maia. Impulsionar as mulheres na economia é também papel das empresas da porta para fora. É por isso que na fabricante de eletroeletrônicos Whirlpool, presidida por Andrea Salgueiro, existe o programa Consulado da Mulher, encabeçado pela marca Consul. Em 18 anos de programa, 1.138 empreendimentos do setor gastronômico chefiados por mulheres foram assessorados. Como resultado, 35.378 pessoas acabaram sendo beneficiadas. Apenas em 2019, o aumento de renda das participantes foi de 42%. “É preciso trabalhar ativamente com a diversidade para promover a mudança e ver os resultados”, diz Salgueiro. Para a executiva, a equidade de gênero é um projeto pessoal que decidiu encampar há cerca de 12 anos, antes mesmo de assumir o cargo atual em agosto do ano passado. Ao longo da carreira ela estima ter prestado mentoria a cerca de 60 mulheres globalmente.
Alguns países consideram estrategicamente a força de trabalho feminina. Na Argentina, a diretora nacional de economia, igualdade e gênero Mercedes D’Alessandro acredita que as mulheres precisem ser mais bem remuneradas, especialmente nas posições de cuidados. No estado do Havaí, nos Estados Unidos, há um documento do governo que orienta a reconstrução da economia a partir de uma visão feminista, com orientações de maior participação delas em diferentes setores de trabalho e também com a iniciativa de acolhimento a mulheres e LGBTI+. Na Nova Zelândia, a primeira-ministra Jacinda Ardern serviu de exemplo sobre como erradicar a pandemia. Além de achatar a curva ao impor medidas duras de isolamento, ela cuidou da população ao incentivar, por exemplo, as pessoas a exibir desenhos de ovos de Páscoa nas janelas para a festividade. “Ao redor do mundo, há diversos exemplos de como as mulheres são afetadas negativamente na pandemia e de como outras estão tentando reverter isso. É preciso ter mais homens dividindo tarefas domésticas e mais mulheres bem remuneradas em cargos de liderança”, diz Julie Nelson, professora de economia na UMass.