Marcas reagem à “personalização privada”
MEIO&MENSAGEM – 27/02/2020
Roseani Rocha
Consumidores conscientes vivem uma saia justa no mundo online: receber a comodidade de um tratamento feito sob medida para seu perfil e necessidades e, por outro lado, abrir mão do sigilo de suas informações justamente para permitir que empresas provedoras de produtos e serviços garantam esse tipo de atendimento “tailor made”.
Tanto isso ocorre que entre as dez tendências globais de consumo para 2020 divulgadas no início do ano pela Euromonitor International está a “personalização privada”, explicada pela empresa de pesquisas e consultoria como o desejo dos consumidores por experiências customizadas, acompanhado de preocupação sobre como seus dados são captados e compartilhados. Segundo a Euromonitor, provavelmente, os consumidores “passarão a optar por não participar de experiências fabricadas digitalmente que não agregam valor”.
E o que as marcas têm achado disso? Andre Leite, gerente de Comunicação e Marketing da Ford, concorda que o consumidor continue mudando nos últimos anos e afirma que a companhia também monitora isso por um estudo próprio de tendências de consumo, segundo o qual a principal preocupação este ano é a busca pela confiança. “As pessoas, antes de decidirem pela compra de um novo produto, fazem ampla pesquisa sobre a empresa – inclusive avaliam se seus valores são parecidos, além de buscarem referências de outras experiências”, destaca.
Quando a empresa consegue estabelecer essa relação de confiança, diz, acaba conhecendo melhor seu cliente, sendo mais eficiente na personalização e, consequentemente, na eficiência do investimento em marketing. Ele cita como exemplo bem sucedido da Ford recentemente as ações durante o Rock in Rio 2019, por meio do app FordPass, que pode ser baixado por donos de Ford e mesmo quem não é cliente da montadora. “Fechamos parcerias para facilitar a mobilidade das pessoas na chegada e saída da Cidade do Rock, com vouchers de desconto em viagens de Uber. Oferecemos acesso gratuito ao cartão Riocard Mais, para uso do transporte público e disponibilizamos o Waze para mostrar as melhores rotas com pins de todos os pontos de metrô, BRT e saídas do Primeira Classe no Rio de Janeiro”, relembra Andre.
A Ford não divulga quanto investe hoje em comunicação digital “por questões estratégicas” e também não é muito específica sobre como a entrada em vigor, em agosto, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, influenciará o trabalho digital da marca. O executivo da montadora afirma que tendo em vista as aplicações da LGPD, a Ford continuará a buscar uma presença protagonista no meio digital e sempre de acordo com a lei.
Empresa que globalmente vive uma transformação digital em ritmo acelerado, o Carrefour, de acordo com a diretora de marketing Silvana Balbo, busca estabelecer um novo jeito de trabalhar, mais fluido, conectado e simples. Ela pontua que uma cultura mais eficiente é o primeiro acelerador para se chegar a um cliente atendido com excelência, o que cada vez mais diz respeito à customização. “Nossa visão aqui é bastante pragmática quanto às necessidades de nossos clientes. Ele deseja o básico bem feito que, em nosso caso, passa por excelência em ominicanalidade, sortimento diversificado e preços competitivos”, diz Silvana.
Com isso, a estratégia da rede varejista é definida como a junção de uma visão de construção de um relacionamento sólido com os clientes por meio de todos os canais nos quais atua à uma cultura de centralidade e desenvolvimento de novas técnicas de trabalho com os times internos. Certamente, muito dessas novas técnicas diz respeito à mídia, que segundo a executiva está se sofisticando rapidamente, algo que antes não era uma prioridade. Isso leva o anunciante a buscar, com seus parceiros de comunicação, uma visão mais clara dos papeis deste novo ecossistema, o que implica em operações in-house, trabalho de marca e planejamento com a agência, assim como o casamento entre a mídia digital e a área de dados da companhia. “Aqui, mais especificamente, temos uma governança local, com parceiros como Google e Facebook que vem nos ajudando a acelerar o processo de martech dentro da companhia”, pontua.
A executiva não havia citado, mas o Carrefour anunciou em outubro do ano passado um projeto para transformar 1.000 profissionais de 300 lojas da rede em criadores de conteúdo locais para páginas do Facebook de suas respectivas unidades. O resultado do trabalho dos chamados “Gerentes digitais” ainda na fase de teste em 15 lojas foi o que animou a escalar a ideia – parceria do Carrefour com a Bornlogic. Uma das lojas de São Paulo registrou aumento de 22% na venda de bebidas, após um anúncio na página local do Facebook. Já no Rio de Janeiro, uma das unidades apostou na oferta de pneus, que teve um acréscimo de 30% de vendas no período. De modo geral, o engajamento do público com as páginas regionais tem sido até sete vezes maior do que a página nacional. Os gerentes digitais receberam treinamento especial desenvolvimento em conjunto por diferentes áreas, como RH, marketing, atendimento ao cliente, prevenção e jurídico.
Dona de muitas marcas que abastecem a seção de bebidas do Carrefour e outros hipermercados, a Diageo diz estar atenta à “personalização privada” por já trabalhar sob um Código de Conduta de Marketing e Digital que preserva a privacidade dos consumidores e usuários como princípio. Além disso, Marco Frade, head de Media, Digital & CRM da Diageo, lembra que por se tratar de uma empresa global a sua já estava adequada às exigências da Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) europeia e disseminado suas regras para todas as subsidiárias da empresa ao redor do mundo. “Alguns países já avançaram em leis mais rígidas de proteção de dados de usuários na Internet e a Diageo sempre adota essas regras locais para se somar ao nosso Código de Conduta”, afirma Marco, garantindo que o mesmo está ocorrendo com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) no Brasil, à qual a Diageo está se adequando, para seguir estritamente todas as normas previstas e se resguardar quanto a comportamentos e usos ilícitos de dados de usuários, não só internamente mas também na relação com os fornecedores contratados. Ainda que o respeito à privacidade seja uma diretriz global, no dia a dia, o desafio, segundo o executivo, é treinar os times internos para se manterem alertas e atualizados quanto aos limites do uso de dados. “E maior ainda é o desafio de selecionar fornecedores que compartilhem da mesma conduta, pois essas contratações têm de passar por crivos internos de análise para que tenhamos a certeza de estarmos lidando com parceiros que tenham o mesmo nível de atuação que a Diageo sobre esse tema”, revela Marco Frade.
De sua parte, a Diageo afirma estar revisando os modelos de verificação de dados de usuários e de parcerias estratégicas com fornecedores que coletam dados no mercado, com o objetivo de se adequar à lei e continuar crescendo em presença digital dentro de um ambiente seguro para os públicos com os quais a companhia e suas marcas se relacionam. Ele faz questão de ressaltar, a propósito, uma comunicação assertiva para cada marca do portfólio, e em todos os casos evitando a possibilidade de consumo por menores de 18 anos de idade, consumo abusivo de bebida alcoólica ou a associação entre álcool e direção. “O nosso intuito é sempre estimular a celebração com responsabilidade e os meios digitais são propícios para que possamos fazer a segmentação de público e ocasião de divulgação das nossas mensagens de forma correta e eficiente”, afirma o executivo da Diageo. Hoje, a estratégia de mídia digital da companhia inclui a divulgação de mensagens em redes sociais e canais de busca, além da busca de estabelecer um relacionamento mais próximo com os clientes por meio do site thebar.com.
Em outro segmento de varejo, mas também se desdobrando para modernizar produtos, lojas, conceitos e a experiência dos clientes, a Riachuelo enxerga a “personalização privada” como algo diretamente relacionado a seu pilar de inovação e processo de transformação digital. Marcella Kanner, gerente de marketing da companhia, cita como exemplo o trabalho com a tecnologia nos pontos de venda, em que é possível mapear pela conexão wi-fi os pontos da loja visitados. A Riachuelo também tem acompanhado de perto a jornada dos clientes para detectar, com pesquisas nos ambientes físicos e uso de inteligência artificial, seus anseios e necessidades. Segundo Marcella, foi por conta desse tipo de observação que a rede percebeu o desejo das pessoas em escolher suas estampas para as roupas. Daí surgiu o espaço Riachuelo +, na loja do shopping Morumbi, em que os consumidores podem escolher uma estampa a ser impressa na hora, além de personalizar a peça com adereços.
Conhecedores do varejo paulistano sabem que o shopping Morumbi costuma ser uma vitrine especial para muitas marcas – não se sabe, muitas vezes, se os projetos inaugurados por lá acabam ganhando outras lojas. Em todo caso, o que é apontado como desafio por Marcella Kanner é a integração de vários tipos de comportamento de consumo, com a marca conseguindo chegar a uma forma que permita entregar uma experiência mais personalizada e com mais valor.
Como seus colegas, a gerente de marketing da Riachuelo não abre o percentual de marketing investido em digital. Mas afirma que a empresa já está reestruturando alguns de seus processos tendo como meta a adequação à Lei de Proteção de Dados Pessoais, no próximo semestre, e uso ainda mais responsável dos dados. “O consumidor é o centro do nosso negócio e queremos oferecer serviços e produtos cada vez mais personalizados para ele, com iniciativas que enriqueçam sua experiência de compra, mas deixando-o confortável com a quantidade de informação que ele compartilha conosco”, argumenta Marcella Kanner.