Escuta como diferencial no jornalismo

Escuta como diferencial no jornalismo

8 de junho de 2020
Última atualização: 8 de junho de 2020
Helio Gama Neto

ORBIS MEDIA REVIEW – 05/06/2020

ANA BRAMBILLA

As aulas de gestão de crise sempre costumam render. Apesar das situações analisadas serem algo desastrosas, a curiosidade fica por conta do absurdo de algumas interações entre jornalistas e audiências. O episódio da leitora que encomendou um pudim à revista de gastronomia se soma aos inúmeros casos em que usuários perguntam qual é o nome da pessoa que responde comentários em nome de uma publicação. É a personificação potencializada pelas redes!

Ainda que interações como estas não cheguem a ser uma “crise”, a troca entre jornalistas e público cria oportunidades que podem servir para aproximar e fidelizar o usuário, ou para torná-lo um crítico ainda mais feroz do nosso trabalho.

E o senhor, está bem?
Nesta semana, uma colega contou o caso de um ouvinte da rádio onde ela trabalhava. Religiosamente no mesmo dia, no mesmo horário de cada semana, ele ligava para a emissora e descarregava sua raiva no jornalista que atendesse o telefone. Geralmente o produtor retrucava ou dava um jeito daquela barbaridade acabar logo e cortar a chamada. Até que um dia, essa colega atendeu o rapaz e, pela primeira vez, alguém da rádio ouviu o que ele tinha a dizer.

O ouvinte xingou, rosnou, destilou todo o seu veneno contra a programação, os radialistas e tudo o que compreendia aquela teimosa sintonia. A colega não retrucou; só ouviu. Depois que o homem esgotou seu português, a jornalista perguntou: “E o senhor, está bem?” – sem ironia, de modo interessado. E adivinhem? Não, ele não estava bem.

Nos minutos seguintes, a raiva deu lugar ao lamento. A mãe dele estava doente e ele, cuidando dela, além de outras penas. A jornalista ouviu, ouviu, ouviu e só intervinha com interjeições de concordância: Puxa vida… Que coisa, né? É… complicado. No fundo, no fundo, o ódio dele não era contra a rádio nem contra os jornalistas, mas contra a vida dele próprio.

A jornalista que sabia ouvir
Aos poucos, o ouvinte enfurecido deu lugar a um homem manso, sofrido, mas educado, que sabia falar para quem sabia ouvir. E isso foi tudo o que a jornalista fez: ela ouviu. Era isso, também, o que aquele homem mais precisava: ser ouvido, ser acolhido.

Como pode um gesto tão simples ter tamanho impacto nas relações humanas – e nas relações entre público e veículo?

Depois de ouvir a história, eu disse à colega: Parabéns, colega. Tu fostes simplesmente humana. Mostraste àquele homem que, do outro lado do telefone, havia um ser humano igual a ele, dotado de sentimentos, individualidade… – e ela complementou: Ele se deu conta de que eu estava trabalhando e parou de xingar!

Beira a obviedade. Mas àquelas pessoas que se revoltam com jornalistas é preciso mostrar que somos profissionais, seres humanos, pais e mães de família, pagadores de impostos enfim… somos pessoas, indivíduos como qualquer outro e assim devemos nos portar. Usar o nome da empresa como salvo conduto ao anonimato nem sempre “salva” o jornalista de enfrentar a insatisfação das audiências. E pior: fica ainda mais difícil resolver o conflito.

Jornalista não tem aura e veículo não é objeto de culto
Ao contrário do que muitos ainda podem pensar, jornalista não tem aura e veículo não é objeto de culto. Walter Benjamin olhava para o que se tornaria “mídia” e denunciava a superexposição daquilo que é mais importante existir do que ser visto.

O coreano Byung-Chul Han faz eco ao frankfurtiano e considera a transparência uma obscenidade de um tempo aceleradamente positivo (afinal, só o botão de Like existe numa estética em que todos são obrigados a serem felizes hoje).

A transparência nos afasta do mistério, do sagrado, da imaginação pródiga em criar jogos de conquista e poder. Ocorre que o jornalismo não é religião, não é espetáculo, não pertence à ordem do onírico e, por mais que esteja feito de gente cheia de subjetividades, o motivo pelo qual a profissão existe anda à pé, descalço e de cara lavada. Jornalismo não é arte. É vida! E não aquela que imita a arte.

Se é feito de realidade, não há porquê o jornalismo se confundir com qualquer manifestação humana que presuma a assimetria para existir, como o teatro e a plateia, o ídolo dos gramados e o torcedor. De fato, as redes sociais viraram do avesso qualquer noção que distinguia o público e o privado, a intimidade do devasso.

Existe uma rica parte do humano que se esgota na transparência excessiva, na busca cega por holofotes que ofuscam a graça e a expressão. Mas essa parte não inclui o jornalista, aquele que escolheu uma profissão que serve à sociedade porque é parte dela. E se não pertencer à essa sociedade, como saberá servi-la?

A capacidade de escuta como diferencial
Abracemos, pois, a transparência de ser, servir e conviver. O convívio, aliás, começa com saber ouvir. Na sociedade da informação falta atenção e o resultado disso é a carência. Quando sugeri para um grupo de editores de um veículo que adotassem práticas de escuta dos usuários, ouvi de uma colega: Ah, tá! Agora a gente vai abrir um consultório psicológico pro leitor! – Eu ri, por não chorar.

Cada indivíduo sabe dos seus limites e das habilidades que dispõe. Saber ouvir não é tão óbvio quanto parece. Mas talvez seja mais necessário agora, no jornalismo, do que em qualquer outra época, em qualquer outra profissão, porque ainda pode ser o diferencial que precisamos para sobreviver.

Enquanto eu alinhava a rotina de responder comentários com uma redação, um dos colegas destacou: “Vamos ser diferentes fazendo isso!” – e a editora lembrou: “É bom iniciar a resposta pelo nome do usuário, né?” – coisa bem boa que existem jornalistas assim!

Sim, editora, é bom mencionar o nome do usuário no início da resposta, porque é tão bom quando um professor chama a gente pelo nome, né? – o sorriso farto no rosto de toda a redação confessou que sim.

Por mais que o jornalista nem sempre seja um professor, ele é um ponto de encontro entre indivíduos com propósitos semelhantes. Nossa tarefa maior passa por criar pontes entre eles, mas para isso, o primeiro passo é ouvir quem eles são.


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Helio Gama Neto