Entenda o ressurgimento da Lei de Segurança Nacional, usada pelo governo Bolsonaro

Entenda o ressurgimento da Lei de Segurança Nacional, usada pelo governo Bolsonaro

22 de julho de 2020
Última atualização: 22 de julho de 2020
Helio Gama Neto

FOLHA DE S.PAULO – 22/07/2020

Felipe Bächtold

Editada durante a ditadura militar, a Lei de Segurança Nacional voltou agora ao debate político após pedidos de investigação feitos pela gestão Jair Bolsonaro contra jornalistas e também contra Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal.

No meio jurídico, a utilização dessa ferramenta pelo governo é vista como uma deturpação de uma legislação anacrônica gestada por um regime autoritário. O texto em vigor desde 1983 também tem sido utilizado neste ano contra militantes bolsonaristas que pediram em uma série de protestos em Brasília o fechamento do Congresso e do STF.

Qual motivo do debate sobre o uso da Lei de Segurança Nacional?
Houve uma sequência de iniciativas recentes do governo Jair Bolsonaro de pedir investigações argumentando violação dessa lei.

A mais significativa foi a representação encaminhada na semana passada à Procuradoria-Geral da República pelo Ministério da Defesa contra o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes, citando essa lei. Gilmar havia declarado que o Exército estava “se associando a um genocídio” por causa da gestão da pandemia do novo coronavírus pelo Ministério da Saúde.

Houve ainda dois pedidos de investigação feitos pelo ministro da Justiça, André Mendonça, contra jornalistas.

No último dia 7, ele requisitou a abertura de um inquérito pela PF, com base na Lei de Segurança Nacional, para investigar artigo do colunista da Folha Hélio Schwartsman. O texto “Por que torço para que Bolsonaro morra” foi publicado após o presidente anunciar que contraiu a Covid-19.

Em junho, Mendonça havia tomado a mesma iniciativa para investigar publicação de charge do cartunista Renato Aroeira reproduzida no Twitter pelo perfil do Blog do Noblat vinculando a suástica nazista a Bolsonaro. O ministro da Justiça citou artigo que trata de casos de calúnia e difamação contra o presidente.

Antes, o ex-presidente Lula (PT) chegou a ser investigado e prestou depoimento por, em discurso a apoiadores, chamar Bolsonaro de miliciano. Esse inquérito já foi arquivado.

Críticos do governo entendem que as iniciativas representam um sinal de tendências autoritárias da Presidência.

Ao mesmo tempo, também houve a recente menção à Lei de Segurança Nacional em investigações contra apoiadores do governo.

Por que o uso dessa lei causa controvérsia?
Porque a lei é tida como uma herança do período ditatorial do país e tem termos considerados genéricos.

A atual versão foi sancionada no final de 1983, pouco mais de um ano antes do fim do regime militar. Nos anos da ditadura, ela foi um dos instrumentos jurídicos mais conhecidos do regime contra opositores.

A lei de 1983 é considerada uma garantia dada a militares durante o período de transição. Substituiu texto de 1978, que por sua vez modificou um decreto-lei de 1969, muito mais duro. Na versão do fim dos anos 1960, auge da repressão, havia previsão até de pena de morte e prisão perpétua.

Antes, em 1935, sob a Presidência de Getúlio Vargas, foi sancionada lei sobre “crimes contra a ordem política”.

O que diz o texto de 1983?
A lei trata fundamentalmente de crimes contra a “integridade territorial e a soberania nacional”, “o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito” e as pessoas dos chefes dos Poderes.

Em 35 artigos, aborda itens como colaboração com governos estrangeiros contra o país, sabotagem contra instalações públicas e incitação à “subversão da ordem política”.

Estabelece como crime “tentar mudar com emprego de violência” o regime vigente, a posse de armamentos privativos das Forças Armadas e saques, sequestros e depredação por motivação política.

Entre outros delitos previstos, há ainda um item sobre caluniar ou difamar o presidente da República ou do Senado, Câmara e Supremo.

O que pensa o presidente Bolsonaro sobre o uso da lei?
Em ao menos duas ocasiões o presidente se disse favorável à aplicação da legislação contra dois adversários políticos. Em 2019, afirmou, a respeito de declarações do ex-presidente Lula, ao sair da prisão: “Temos uma Lei de Segurança Nacional que está aí para ser usada”.

Em maio, após a saída de Sergio Moro de sua equipe, Bolsonaro disse que o ex-aliado vazava informações a jornalistas. “Isso é crime federal, talvez incurso na Lei de Segurança Nacional”, disse.

De que a forma a lei foi usada contra apoiadores do presidente?
Em abril, o procurador-geral, Augusto Aras, pediu ao Supremo autorização para abrir um inquérito a respeito de possível infração à Lei de Segurança Nacional por parte de organizadores de ato em Brasília pedindo intervenção militar, com a participação do presidente e de deputados bolsonaristas.

Aras entende que, ao defender um “atentado à democracia”, há violação da lei de 1983. O ministro da corte Alexandre de Moraes autorizou a abertura da investigação e, em junho, houve buscas contra deputados e outros participantes.

Em maio, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, foi alvo de um pedido de investigação com base nessa lei por falar que um “momento de ruptura” no país estava próximo.

Há possibilidade de a lei ser usada contra o próprio Bolsonaro?
Opositores do presidente entendem que a participação dele em atos a favor do fechamento do Congresso e do STF, como os que ocorreram em Brasília nos últimos meses, poderia ser enquadrada como um crime com base na Lei de Segurança Nacional.

O partido Cidadania chegou a pedir em abril que o presidente fosse incluído no mesmo inquérito de iniciativa da PGR sobre esses atos. Para que Bolsonaro seja alvo desse dispositivo, porém, seria preciso que o procurador-geral apresentasse denúncia a respeito, o que parece improvável.

Como a lei tem sido utilizada desde o fim da ditadura?
O uso da lei não é raro e chegou a ter menções em episódios marcantes da política na última década. Mas condenações e cumprimento de pena por causa dela são incomuns.

Antes do governo Bolsonaro, ela ganhou destaque ao ser aplicada contra Adélio Bispo de Oliveira, que esfaqueou o então candidato a presidente em ato de campanha em 2018, em Minas Gerais. O agressor chegou a virar réu enquadrado em artigo que estabelece como crime praticar atentado pessoal por “inconformismo político”.

Posteriormente, o juiz responsável considerou que o réu tem transtorno mental e decidiu pela internação por prazo indeterminado como medida de segurança.

Na greve dos caminhoneiros de 2018, o Ministério Público apurou supostas violações da Lei de Segurança nos atos.

Em 2016, a então presidente Dilma Rousseff (PT) citou o texto ao criticar decisão de Sergio Moro de liberar áudios de telefonemas dela com Lula. “Fere frontalmente a Lei de Segurança Nacional, que protege o presidente”, disse Dilma.

Houve ainda investigações com base na lei dos protestos de 2013 e de motins de PMs pelo país.

Nos anos 2000, integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) foram alvo dessa lei. No Rio Grande do Sul, por exemplo, oito membros do movimento foram denunciados por causa de uma invasão de propriedade no interior em que supostamente teria havido participação de estrangeiros. A Justiça rejeitou a ação.

Qual a interpretação do STF sobre essa lei?
Não houve até agora uma decisão específica sobre a constitucionalidade da Lei de Segurança Nacional, nem há julgamento previsto a respeito.

A jurisprudência da corte estabelece requisitos para que um crime seja enquadrado no texto de 1983, como a motivação política do acusado, o que tende a invalidar, por exemplo, acusações de posse de armamento privativo das Forças Armadas.

Em um julgamento em 2016 a respeito de um caso que envolvia essa legislação, os ministros Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandowski disseram que ela é incompatível com o sistema democrático e deveria ser revista.

Quais foram as iniciativas para rever o texto?
Medidas de governos anteriores para invalidar a legislação acabaram não prosperando.

No governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), foi elaborado um projeto para revogar o texto antigo e criar uma seção no Código Penal chamada “crimes contra o Estado democrático de Direito”. A proposta reformulava a redação da tipificação de crimes como atentado à soberania, traição e espionagem.

Em 2008, o então presidente Lula (PT), ele próprio detido em 1980 com base em versão anterior do texto, articulou a elaboração de outro projeto.

A Comissão Nacional da Verdade, criada para apurar crimes da ditadura, recomendou em seu relatório final em 2014 a revogação da lei.

No Congresso, há propostas em tramitação para alterar a norma, sendo que ao menos oito delas foram apresentadas neste ano na Câmara. Outros projetos também foram elaborados para revogá-la, mas as iniciativas não andaram.

Deputados petistas apresentaram proposta em 2015 de revogação do dispositivo mencionando como justificativa seu uso contra o MST.

Como funciona em outros países?
O professor de direito constitucional da PUC-SP Luiz Guilherme Conci diz que é comum e necessária a existência de legislação protegendo a ordem constitucional. “É importante ter uma lei que defina os crimes contra o Estado, mas que seja interpretada de modo democrático, contemporâneo.”

Portugal, por exemplo, aprovou em 2008 a Lei de Segurança Interna, que trata do “normal funcionamento das instituições” e do “respeito pela legalidade democrática”, além de citar várias vezes o terrorismo.

Nos Estados Unidos, após os ataques de 11 de Setembro de 2001, entrou em vigor o “Patriot Act”, lei criticada por autorizar procedimentos como monitoramento de emails extrajudicialmente em prol do combate ao terrorismo.


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Helio Gama Neto