‘É indispensável financiar a existência vigorosa do jornalismo’, diz advogada do conselho de supervisão do Facebook
O GLOBO – 21/02/2021
Ernesto Cortés, do El Tiempo/GDA*
A advogada colombiana Catalina Botero tem tido muito o que analisar sobre o debate atual a respeito da moderação de conteúdo nas redes sociais. Ela é a única latino-americana a integrar o conselho de supervisão independente (OSB, na sigla em inglês) criado no ano passado para Facebook e Instagram — as duas plataformas mais importantes do império liderado por Mark Zuckerberg. Não tem faltado assunto.
Na semana passada, o Facebook entrou em choque com o governo de Austrália ao resistir à nova regulação do país que determina a remuneração de produtores do conteúdo que transita pela plataforma.
Bloqueou o conteúdo de veículos de mídia australianos e acabou prejudicando serviços informativos de utilidade pública relacionados à pandemia e às emergências provocadas por fenômenos climáticos.
Em janeiro, o Facebook suspendeu a conta do ex-presidente dos EUA Donald Trump após sua retórica conspiratória levar apoiadores a invadir o Congresso do país contra a posse de Joe Biden. Mas já se recusou a moderar outros conteúdos considerados impróprios.
Em 2020, a rede social havia sido alvo de boicotes liderados por movimentos sociais ligados a causas como o antirracismo por causa da falta de ações contra discursos de ódio na plataforma.
Em entrevista ao Grupo de Diários América (GDA), do qual O GLOBO faz parte, Catalina diz que a decisão contra Trump foi tomada diretamente pelo Facebook, e que o caso ainda está em avaliação no conselho criado para ajudar a gigante da tecnologia a lidar melhor com o dilema em torno da moderação de conteúdo.
Segundo ela, o grupo tem poder para reverter ações como esta se entender que foram indevidas ou limitadoras do direito de expressão. Para a advogada, a base desse tipo de decisão dever ser o conceito internacional de direitos humanos.
Para Catalina, as redes não podem ser responsabilizadas pelo conteúdo postado por milhares de usuários, mas precisam ter mecanismos que permitam aos cidadãos denunciar vulnerabilidades a direitos fundamentais e dar consequência às denúncias.
O Facebook e outras redes sociais decidiram implementar sua própria regulamentação sobre desinformação, discurso de ódio e incitação à violência nos últimos meses, com decisões polêmicas como a suspensão de contas ou alertas em publicações. Há risco para a liberdade de expressão?
O direito à liberdade de expressão protege a circulação de informações e opiniões diversas, inclusive aquelas que nos desagradam ou são perturbadoras e ofensivas.
No entanto, há certos limites excepcionais, como por exemplo, a incitação à violência, o abuso ou exploração infantil ou a circulação de imagens íntimas não consentidas.
A melhor maneira de saber se uma informação está ou não protegida é aplicar os critérios do Direito Internacional relacionado aos direitos humanos.
Se uma plataforma é advertida de que está sendo usada para circular conteúdos não protegidos, tem a tarefa de eliminá-los.
As plataformas reconhecem que, no exercício dessa função, têm cometido erros, derrubando algumas vezes conteúdos protegidos e outras permitindo a circulação do que não deveria estar protegido pelo Direito Internacional.
Por isso é importante que se encontrem adequadamente capacitadas e que existam órgãos de supervisão independentes.
Neste sentido, parece-me que o modelo de autorregulação, com órgãos autônomos e independentes comprometidos com a defesa dos direitos humanos, é a melhor estratégia.
Acredita ser necessário que os países que comecem a legislar a esse respeito?
Na discussão de qualquer regulação, deve-se cuidar para não entregar poder demais aos governos. A regulação só será democrática se fundada nos princípios fundamentais dos direitos humanos.
Acredito que empresas com o poder do Facebook, por exemplo, deveriam tomar menos decisões por si próprias em casos relacionados à liberdade de expressão e aos direitos humanos.
Um modelo de supervisão independente pode ajudar a produzir decisões mais robustas com base em princípios universais compatíveis com modelos democráticos.
Nesse contexto, há um debate sobre se as redes sociais são ou não responsáveis finais pelo conteúdo que se publica em suas plataformas. Qual é sua posição?
Creio que as redes sociais não são meios de comunicação e não devem ser tratadas como tal. No entanto, creio que devem ter sistemas efetivos para que os usuários ou terceiras pessoas possam identificar e reportar facilmente conteúdos que possam violar os direitos humanos.
Devem ter também mecanismos adequados de revisão das denúncias e tomar decisões que se adequem aos mandatos internacionais em matéria de liberdade de expressão.
Se responsabilizássemos as redes sociais por todo o conteúdo que milhões de usuários publicam diariamente, não seria possível que funcionassem como uma estrutura aberta, global e descentralizada como atualmente.
Que papel tem o conselho de supervisão diante de decisões como a que o Facebook acaba de adotar na Austrália, de suspender informações de veículos de imprensa local na plataforma por causa da exigência dos produtores de conteúdo receberem pela monetização feita pela rede social de seus conteúdos. Como fica a liberdade de expressão neste caso?
Nas discussões entre as plataformas e os meios de comunicação há muitos temas que devem ser distintos. Alguns podem chegar ao OSB, e, por isso, não posso me pronunciar.
No entanto, creio que é indispensável encontrar um modelo de negócio que permita financiar a existência vigorosa do jornalismo profissional.
As redes são fundamentais para democratizar o conhecimento, mas os meios são essenciais para produzir informação séria, contrastada e baseada em evidências.
Sem os meios de comunicação e o jornalismo de investigação independente e profissional, a democracia tem poucas possibilidades de sobreviver.
Qual é a influência real de um conselho como o que a senhora integra no Facebook em decisões como a suspensão da conta de Trump?
O caso de Trump foi remetido ao conselho, e, por isso, também não posso falar especificamente sobre isso até que tenhamos uma decisão.
No entanto, posso dizer que o OSB tem o poder de tomar decisões vinculantes sobre moderação e conteúdos, e o Facebook se comprometeu publicamente a cumpri-las.
Recentemente houve várias decisões da empresa que revertemos, restaurando os conteúdos eliminados.
Todas as nossas decisões são públicas e estarão disponíveis para que qualquer pessoa as leia. Desde outubro, quando o conselho foi criado, já recebemos dezenas de milhões de casos.
Priorizamos os que têm potencial de afetar o maior número de usuários no mundo, o que são de notável importância para o discurso público e os que questionam de forma significativa as políticas do Facebook.
A lentidão para tomada de decisões do conselho não pode se tornar um fator limitador?
Até agora o conselho tem produzido suas decisões nos prazos estabelecidos. No entanto, é certo que não são prazos curtos. Mas é importante mencionar que o conselho não vai substituir a companha em sua tarefa habitual de moderação em escala global.
O conselho serve para casos emblemáticos, significativos e particularmente difíceis, cuja resolução possa impactar não só um usuário, mas um número grande deles e as próprias políticas da companhia.
*El Tiempo, da Colômbia, integra o Grupo de Diários América (GDA), do qual O GLOBO faz parte