É DIGITAL INFLUENCER QUE FALA?

É DIGITAL INFLUENCER QUE FALA?

16 de agosto de 2019
Última atualização: 16 de agosto de 2019
Helio Gama Neto

ÉPOCA – 15/08/2019

EDWARD PIMENTA

Nelson Rodrigues vai à América. A premiada atriz Viola Davis acaba de anunciar que levará a peça O beijo no asfalto para uma montagem na Broadway, além de duas adaptações audiovisuais, no cinema e na TV.

A peça narra a morte de um homem atropelado por um ônibus. Agonizando na rua, ele pede um beijo ao transeunte que tenta salvá-lo, como último desejo. E o beijo vai parar nas manchetes dos jornais.

O moralismo suburbano é a matéria-prima de Nelson. Quase 60 anos depois, o moralismo suburbano elege um presidente. Tudo permanece absolutamente igual.

Nelson Rodrigues era um influenciador.

Se você considerar influenciador alguém com uma obra de grande alcance, capaz de legar às gerações futuras um pensamento sobre qualquer coisa. Nelson tinha um pensamento sobre o Brasil.

(Hoje em dia os influenciadores não precisam ter necessariamente um pensamento, nem sobre o Brasil, nem sobre qualquer coisa.)

Nelson sempre esteve no jornal — e o jornal, em sua época, era onde as conversas aconteciam. Os veículos eram os influenciadores hegemônicos porque detinham a exclusividade dos meios de produção e distribuição de informação.

Foi repórter policial, editorialista político, cronista esportivo e autor de folhetins, crônicas, contos, romances, novelas e peças teatrais. Teria sido blogueiro? Youtuber?

O Brasil era pequeno, tudo acontecia no Rio de Janeiro. Nos anos 30, a então capital federal contava com pouco mais de 2 milhões de habitantes e era ali que circulavam as discussões sobre a formação de um ideário nacional.

Além disso, estava em curso um projeto urbanístico que expandiu os subúrbios cariocas, levando sua cultura — as modinhas, as serestas de violão, os cordões carnavalescos, o reisado, as brigas de galo — para o centro, para o universo da elite intelectual, e foi desse universo que Nelson extraiu a atmosfera de suas obras.

Começou a escrever teatro premido pela falta de dinheiro, mas a ambição literária logo cresceu. A partir de então, seu objetivo passou a ser o reconhecimento dos grandes intelectuais da época — que atingiu ainda jovem.

Nelson buscou o Brasil profundo no subúrbio carioca. Era eminentemente urbano. Em sua visão do subúrbio, incorporou até Freud — sexo, incesto e tabus variados são temas recorrentes. Como exímio cronista, resumiu o sentimento nacional na expressão “complexo de vira-lata”. E assim definia o seu tempo:

“Até o século XIX, o idiota era apenas idiota e como tal se comportava. Deve-se a Marx o formidável despertar dos idiotas. Estes descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da onipotência numérica. E, então, aquele sujeito que, há 500 mil anos, limitava-se a babar na gravata, passou a existir socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente etc. Houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas”.

Sua morte, em 1980, simboliza o fim de um tempo em que o pensamento de intelectuais titânicos estabelecia a ordem das coisas. O processo de globalização estava em curso e logo o mundo todo assistiria – e ainda assiste – à aguda transformação cultural desencadeada pelo avanço tecnológico.

A democratização do acesso aos meios de produção e distribuição de informação refez o conceito de influência. Os publishers agora são apenas uma voz entre as milhões que disputam espaço na arena digital do debate público.

O grande acontecimento do século XXI, até aqui, é a ascensão espantosa e fulminante dos ˜digital influencers˜.

INFLUENCIADORES DIGITAIS
O Instituto QualiBest entrevistou 4.283 internautas brasileiros que acessam redes sociais, homens e mulheres com mais de 18 anos, das classes ABC e de todas as regiões do país a fim de descobrir qual a relação dos brasileiros com os influenciadores digitais.

Não havia no questionário qualquer pergunta sobre se os indivíduos já ouviram falar de Nelson Rodrigues e também não dá para saber quais teriam sido as respostas.

Dos entrevistados, 71% afirmaram seguir algum influenciador digital e esse número sobe para 81% entre os jovens de até 19 anos. O estudo mostra que os influenciadores são a segunda fonte de informações para a tomada de decisão na compra de um produto, citada por 49% dos respondentes, perdendo apenas para amigos e parentes.

Os maiores influenciadores do Brasil são Whindersson Nunes, Boca Rosa, Hugo Gloss, Gabriela Pugliesi, Neymar, Camila Coelho, Felipe Neto e Ana Maria Broghi — não tem importância se você nunca ouviu falar.

Na pesquisa, a cantora Anitta reina soberana quando considerado o resultado da categoria música. Isso quer dizer que toda vez que ela faz um post patrocinado para os 40 milhões de indivíduos que a seguem no Instagram, alguns milhares de reais são acrescidos a sua conta bancária. Anitta foi à América.

Kisses , seu primeiro álbum internacional, lançado no primeiro semestre de 2019, fez estreia ao redor do mundo e registrou sucesso em duas paradas na Billboard.

Todos os clipes do álbum passaram a marca de 1 milhão de visualizações no YouTube em pouco mais de 24 horas. No Spotify, as dez canções do álbum aparecem entre as 30 músicas mais ouvidas no Brasil.

Desde a Bossa Nova não exportávamos um bem cultural de tão longo alcance, capaz de capturar a atenção e influenciar a vida social da juventude — uma redenção definitiva do nosso complexo de vira-lata.

A maior estrela do pop brasileiro começou a carreira aos oito anos cantando no coral da Igreja Santa Luzia, no bairro Honório Gurgel, subúrbio do Rio. Desde pequena, queria ser artista, rica e famosa.

Em 2009, começou a publicar vídeos em seu canal no YouTube, em que exibia suas músicas e coreografias. Não demorou muito para que alcançasse o sucesso planetário.

Movida pela ambição, a meta parece ser tornar-se uma figura tão influente quanto Beyoncé, um ícone cultural nos Estados Unidos.

A estética do morro carioca e a energia sexual da mulher são sua matéria-prima, o que fica evidente em Vai malandra , o videoclipe dirigido pelo fotógrafo Terry Richardson, com mais de 360 milhões de visualizações.

A estética do morro e a energia sexual são territórios encampados por progressistas e intelectuais feministas. Logo, a cantora pop é instada a se posicionar sobre os mais variados temas, como aconteceu durante as eleições, nas ocasiões em que o candidato eleito pelo moralismo suburbano avançou sobre as pautas da esquerda.

Ela sabe que toda unanimidade é burra, mas não parece estar disposta a perder de uma só vez os integrantes da numerosa bancada do moralismo suburbano. E também conhece o poder de articulação de um rebolado.

Que tempo fascinante para se viver.

Edward Pimenta é jornalista, dirige o G. Lab, estúdio de branded content das publicações do Grupo Globo. Antes, criou o Estúdio Abril Branded Content e comandou também a área de Apoio Editorial da Editora Abril. Foi coordenador do Curso Abril de Jornalismo e escreveu para Estadão, Superinteressante, VIP, Playboy, HuffPost, Veja e Bravo!. É professor do curso de pós-graduação em marketing de conteúdo da Universidade Mackenzie e publicou a ficção O homem que não gostava de beijos (Record).


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Helio Gama Neto