DONALD TRUMP E A MENTIRA COMO ESTRATÉGIA
ÉPOCA – 04/07/2019
Jonathan Rauch, com tradução de Victor Calcagno
Muito antes de Donald Trump começar sua carreira política, ele explicou, com uma insolência característica, sua relação com a verdade. Em uma entrevista em 2004 a Chris Matthews na rede de televisão MSNBC, Trump elogiou os bem-sucedidos ataques republicanos aos atos heroicos de guerra do senador John Kerry, então candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos. “Está quase parecendo que ( George W. ) Bush é um herói de guerra, e Kerry não”, disse Trump, admirado. “Acho que pode ser a maior reviravolta que já vi.” Matthews então fez uma pergunta sobre a insinuação do então vice-presidente Dick Cheney de que a eleição de Kerry levaria a um ataque devastador contra os EUA. “Bem, é uma afirmação terrível, a menos que ele saia dessa sem ser punido”, disse Trump. Com essa declaração extraordinária, Trump se mostrou um estudante atento da desinformação e seu princípio de operação: a realidade é quanto você consegue escapulir sem ser punido.
O conhecimento que Trump tem do conceito básico de desinformação oferece algum discernimento sobre a forma como ele, enquanto presidente, aborda a verdade. É fato que o presidente mente não só com frequência e sem escrúpulos, mas de uma forma diferente de antigos políticos. Esses podiam distorcer a verdade, mas a respeitavam e a tratavam como um limite. A estratégia de Trump é completamente diferente. Não é coincidência que uma de suas primeiras ações foi obrigar seu porta-voz a contar uma mentira absurda sobre a quantidade de pessoas na cerimônia de posse. A intenção não era exatamente enganar alguém sobre esse fato. O presidente quis mostrar à imprensa e ao público que ele pretendia intimidar sua equipe, a mídia e a verdade.
No caso de alguém não ter entendido, Sean Spicer, o então porta-voz da Casa Branca, deixou claro algumas semanas depois quando anunciou estatísticas de emprego favoráveis. Durante o governo Obama, Trump era assíduo em chamar essas mesmas estatísticas mensais de “mentirosas” e “ficção total”. Mas e agora? “Falei com o presidente sobre isso e ele disse para citá-lo claramente. Elas ( as estatísticas ) podiam ser falsas no passado, mas agora são muito reais”, disse Spicer. O presidente não estava dizendo que a Secretaria de Estatísticas Trabalhistas tinha melhorado sua metodologia. Ele estava dizendo que a verdade e a mentira eram subordinadas a sua vontade. De lá para cá, essas mentiras se multiplicaram. Para o presidente e seus apoiadores, mentir reflete uma estratégia, não apenas uma falha de caráter ou doença.
Um dos vice-presidentes mais poderosos da história americana, o republicano Dick Cheney foi um dos principais defensores da Guerra do Iraque (2003-2011). Foto: Doug Mills / Divulgação / The New York Times
Um dos vice-presidentes mais poderosos da história americana, o republicano Dick Cheney foi um dos principais defensores da Guerra do Iraque (2003-2011). Foto: Doug Mills / Divulgação / The New York Times
“PELA PRIMEIRA VEZ OS EUA ENFRENTAM UM ATAQUE SISTEMÁTICO, VINDO DOS MAIS ALTOS ESCALÕES DO PODER, CONTRA A HABILIDADE COLETIVA DE DISTINGUIR VERDADE E MENTIRA”
Os EUA enfrentaram diversos desafios em sua cultura política, mas essa é a primeira vez que vemos um ataque epistêmico federal: um ataque sistemático, vindo dos mais altos escalões do poder, contra a habilidade coletiva de distinguir verdade e mentira. “Essas são águas desconhecidas para o país. No passado, nós discutimos sobre os valores aplicados à realidade objetiva ou, de vez em quando, sobre o que a constituía, mas nunca sua existência ou relevância”, disse o ex-diretor da CIA, Michael Hayden, em uma entrevista ao Washington Post em abril. Em outras palavras, Trump e seu exército de trolls buscam minar a constituição do entendimento. O ataque, observou Hayden, mira a “existência ou relevância da própria realidade objetiva”. Mas o que é a realidade objetiva?
No vocabulário cotidiano, realidade se refere normalmente ao mundo lá fora: as coisas como são, independentemente da percepção e dos erros humanos. Realidade também se aplica a coisas sobre as quais nos sentimos seguros, coisas em que acreditamos e que nenhum desejo consegue mudar. Mas, é claro, humanos não têm acesso a um mundo objetivo independente de suas mentes e sentidos, e a certeza subjetiva não é garantia da verdade. Filósofos pelejaram com esses problemas por séculos e hoje eles têm uma boa definição funcional da realidade objetiva. É um conjunto de proposições que foram validadas de alguma forma e, portanto, se mostraram ao menos uma verdade condicional — isto é, uma verdade, a menos que seja desmascarada.
É preciso notar, no entanto, que “validada de alguma forma” esconde um truque. De que forma? Alguns americanos acreditam que Elvis Presley está vivo. Quem deve decidir o que está certo? E quem deve decidir quem decide? Esse é o problema da epistemologia social, que lida com a forma como sociedades chegam a um tipo de consenso público sobre a verdade. É um problema fundamental para todas as culturas e países, e as tentativas de resolvê-lo remetem ao menos a Platão.
Há muitas maneiras de resolver questões sobre a realidade. A maioria delas é terrível, porque se apoia em autoritarismo, violência ou ambos. Como o grande filósofo americano Charles Sanders Peirce disse em 1877, “quando um acordo completo não é atingido, um massacre geral de todos os que não pensaram de certa forma tem se provado um meio muito efetivo de definir opiniões em um país”. Como apontou Peirce, uma forma de evitar o massacre seria atingir a unanimidade, ao menos em questões centrais.
Mas essa não é exatamente a resposta correta, também. A discordância sobre questões centrais é inerente à natureza humana e essencial para uma sociedade livre. Se a unanimidade em problemas centrais não é possível, nem mesmo desejável, o que é necessário para ter uma realidade social funcional? A resposta é que precisamos de um consenso da elite, e com sorte algo próximo de um consenso público, sobre o método de validar as proposições. Nós não precisamos nem podemos concordar que as mesmas coisas são verdade, mas uma massa crítica precisa concordar sobre o que fazemos para distinguir a verdade da mentira e, mais importante, quem faz isso.
Quem pode decidir questões sobre a verdade objetiva? A melhor resposta é ninguém em particular. A maior das redes sociais humanas foi criada há séculos, após a invenção da imprensa. Em reação, cientistas e filósofos começaram a engendrar uma ideia radical. Eles tiraram a invenção da realidade das mãos autoritárias de sacerdotes e príncipes, entregando-a a uma comunidade descentralizada de testadores críticos que procuram pelos erros uns dos outros. Em outras palavras, eles terceirizaram a objetividade para uma teia social. Gradualmente, durante a revolução científica e o Iluminismo, as normas dessa teia e as instituições se juntaram em um sistema de regras para identificar a verdade: uma constituição do entendimento.
Embora não seja especificada na lei, a constituição do entendimento tem seus equivalentes de pesos e contrapesos, separação dos Poderes, instituições governantes, eleições e virtudes cívicas. Os membros da comunidade que apoiam e sustentam a constituição do entendimento não têm que concordar sobre os fatos. O segredo, sem dúvida, é controlar suas discordâncias. Mas eles precisam concordar com algumas regras.
Uma dessas regras é a de que qualquer hipótese pode circular. Isso é liberdade de expressão. Mas outra regra diz que uma hipótese só pode fazer parte da realidade se ela ainda for capaz de persuadir as pessoas após grande questionamento e críticas. Isso é o teste social. Apenas aquelas ideias que são aceitas o suficiente para superar os questionamentos no tempo são consideradas conhecimento, e mesmo elas só existem até serem desmascaradas.
Os resultados têm sido espetaculares, de três formas. Primeiro, organizando milhões de cabeças para resolver bilhões de problemas, a constituição epistêmica dissemina conhecimento em um alto nível. Segundo, ao insistir em validar verdades por um processo decentralizado e não coercitivo que nos força a convencer o outro com evidências e argumentos, a estratégia acaba com a prática de matar ideias ao matar seus difusores. Terceiro, ao não colocar a realidade sob o controle de alguém em particular, ela destrona o autoritarismo intelectual e compromete a sociedade liberal com o pluralismo intelectual e a liberdade de pensamento. Juntas, essas inovações não fizeram nada além de transformar nossa forma de viver, aprender e nos relacionarmos. Mas sempre existiram inimigos naturais. Um deles, um parasita antigo, transformou-se recentemente em algo parecido com um supervírus epistêmico.
Não há nada de novo na desinformação. Diferente de mentiras normais e propaganda, que tentam nos fazer acreditar em algo, a desinformação tenta nos fazer desconfiar de tudo. Ela dissemina tanta informação errada e tantas calúnias sobre fontes de informação, que as pessoas acabam dizendo: “Eles são todos um bando de mentirosos”.
Embora a desinformação seja algo antigo, ela recentemente se juntou à internet para produzir algo novo: uma versão de desinformação descentralizada e apoiada em multidões que ficou conhecida como trolagem. Trolls atacam notícias reais e suas fontes, disseminam notícias falsas e criam cópias artificias de si mesmos para difundi-las ainda mais. Epistemologicamente, são anarquistas ao negar qualquer validação para a verdade. Como um vírus, tudo o que importa a eles é se reproduzir e se espalhar. Ainda assim, trolar é epistemologicamente de baixa tecnologia. É antissocial, sociopata e consequentemente difícil de direcionar para algum objetivo. Tudo o que se pode fazer é espalhar a confusão e destruir a confiança. E por que alguém faria isso?
Para entender a epistemologia do troll, pense na constituição do entendimento como um funil. No lado mais largo, milhões de pessoas jogam milhões de hipóteses todos os dias. Apenas uma fração mínima de novas ideias serão provadas como verdade. Para encontrá-las, colocamos essas hipóteses diante de um processo social para encontrar erros. Apenas uma mínima porcentagem consegue chegar no final do funil. Após alguns anos, um tipo de válvula social — chamada prestígio e reconhecimento — admite as ideias sobreviventes no escopo do conhecimento.
A constituição do entendimento faz um pedido muito forte: um apelo à supremacia na organização social de tomada de decisões sobre o que é ou não realidade. Nós permitimos ideias sobre verdades alternativas, mas não as deixamos escrever livros, receber endosso, ser aceitas em revistas científicas, definir a agenda de pesquisa, dominar as manchetes, servir de perícia ou ditar o caminho do dinheiro público.
Você pode acreditar no que quiser e dizer o que quiser. No entanto, se suas crenças não forem comprovadas ou se você não submetê-las a checagem, você não pode esperar que alguém mais se importe com o que diz. Quebrar esse balanço é difícil e mantê-lo envolve muita cooperação social implícita. Com isso em mente, as implicações de uma epistemologia dos trolls se afunila. Ao insistir na ideia de que todos os checadores são mentirosos, trolls desacreditam a possibilidade de uma realidade social validada e abrem as portas para o conhecimento tribal, o pessoal, o partidário ou outras manifestações de anarquia epistêmica.
A constituição do entendimento é organizada em torno de um código de honra epistêmico: a realidade objetiva existe; esforços para encontrá-la devem ser impessoais; credenciais importam; o que não foi testado não é conhecimento. Trolls violam todas essas normas. Dessa forma, Trump e seu exército de trolls se regozijaram ao ressignificar a acusação de que estavam espalhando notícias falsas. Em 2013, um usuário do Twitter chamado @backupwraith postou: “Acredito claramente que @realDonaldTrump é o maior troll de todo o Twitter”. O próprio @realDonaldTrump fez questão de responder: “Um grande elogio!”. Não podemos dizer que ele não avisou.
Trolar é sociopático e a desinformação é parasitária, mas como esse antigo (porém evitável) inseto se tornou um supervírus? Em nossa era de grandes empreendimentos, os defensores da realidade se tornaram tolerantes à desinformação. Não parecia haver um modelo privado de negócios para ela e os atores governamentais estavam enfraquecendo. O que não podíamos prever era uma tempestade perfeita de mudanças tecnológicas, econômicas e políticas trabalhando juntas para prejudicar a constituição do entendimento.
Primeiro, as redes sociais criaram uma plataforma de distribuição de desinformação. Postar coisas não custa nada. Mobilizar exércitos de trolls formados por humanos e robôs é fácil e barato. Como disse o crítico digital Frederic Filloux, “por algumas centenas de dólares, qualquer um pode comprar milhares de contas em redes sociais ou milhares de endereços de e-mails”. Segundo, os softwares aprenderam a hackear nosso cérebro. Algoritmos sofisticados permitem que mensagens e imagens sejam imediatamente identificadas e feitas de alvo. Terceiro, a economia dos cliques criou um modelo de negócio. A desinformação foi do vandalismo ao lucro. Ao mesmo tempo, o modelo de negócio tradicional da mídia enfraqueceu. Uma vez que reportagens precisas são mais caras de produzir que notícias falsas, a vantagem econômica de notícias verdadeiras sumiu.
Um outro passo foi então necessário para completar o processo: políticos e Estados inteiros se serviram dos trolls como armas. A Rússia, como todos sabemos, estava à frente no processo de entender como sistematizar e mercantilizar a desinformação. Enquanto atores apoiados pelo Estado, junto de trolls e robôs independentes, trocavam notícias falsas, eles criaram uma câmara de ressonância desorientadora.
Tudo isso foi agravado por outro ator. Um estudante da desinformação e um troll autodeclarado, Trump definiu sua fama política com uma mentira sobre o nascimento de Barack Obama. Como um vírus epistêmico, ele comandou a mídia e a reprogramou para alavancar seus memes. A contribuição mais importante de Trump para a trolagem da mente americana não é o que ele diz, mas o fato de ser impossível ignorá-lo. No passado, a constituição do entendimento lidava com as verdades alternativas e as continha, ignorando-as e marginalizando-as. Mas não há como marginalizar um presidente americano.
Trump e os trolls vão triunfar? Eu duvido. A trolagem enquanto arma aproveitou-se da vantagem de ser uma surpresa, mas à medida que isso diminui, o exército de trolls encontrará desvantagens. Existem hordas de trolls, mas a constituição do entendimento tem instituições. Criar conhecimento é inerentemente um assunto profissional e estruturado. Se você está envolvido em química, jornalismo diário ou análise de inteligência, testar hipóteses requer tempo, dinheiro, habilidade, experiência e interação social complexa. Ser um estudioso ou jornalista realizado requer anos de treinamento e aculturação, que somente as instituições podem oferecer.
As redes de trolls são maléficas, o que as torna auto-organizadas e persistentes. Mas elas não podem abordar a profundidade institucional das comunidades construídas em torno da constituição do entendimento, nem tentam. As acusações de que a academia, o jornalismo e outras instituições baseadas em evidências são falsas, preconceituosas, ilegítimas, racistas, opressivas e assim por diante não são novidade e contêm importantes grãos de verdade. A resposta, no entanto, é remediar os defeitos, e não atacar as instituições. O dano que o ataque de trolls inflige depende de muitas coisas, mas principalmente de como as instituições se recuperam para melhorar seu desempenho e defender seus valores. A maioria dessas instituições parece estar enfrentando o desafio. As principais organizações de mídia, por exemplo, responderam bem aos ataques populistas sem precedentes de Trump. O público parece estar respondendo com um novo respeito, ainda que às vezes relutante.
Os tribunais e a aplicação da lei também reagiram resolutamente, com bravura. Ainda mais frustrante para o presidente tem sido a determinação de profissionais dentro do Departamento de Justiça e do FBI em manter sua integridade. O mesmo parece ser verdade para a comunidade de inteligência. Novas mídias e plataformas sociais não tiveram bom desempenho, mas estão se esforçando para melhorar. Seus próprios erros e pontos cegos os deixam vulneráveis e elas não têm as culturas institucionais e defesas profundas que a mídia antiga desenvolveu.
Mas então, na categoria não tão quente, há a academia, que pode muito bem ser a mais importante das instituições que compõem a constituição do entendimento. No entanto, é preciso usar uma lanterna em plena luz do dia, ao estilo de Diógenes, para encontrar um conservador em um departamento de ciências humanas. Muitos acadêmicos e estudantes que se inclinam para a direita estão escondidos. A universidade não parece ser um espaço seguro para eles.
No campus , os palestrantes conservadores são muitas vezes evitados e enxotados em termos histéricos. Uma declaração impensada, mesmo que não seja obviamente polêmica — digamos, a sugestão de que alunos adultos em Yale não precisam de orientação universitária sobre suas fantasias de Halloween — pode provocar uma tempestade.
A grande maioria dos acadêmicos esforça-se para realizar pesquisas padrão ouro, e muitos, se não a maioria dos estudantes, se ressentem silenciosamente da cultura em destaque. Mas suas vozes não são as vozes dominantes nas universidade ou na mídia. Notícias sobre a intolerância e a irracionalidade no campus aparecem nos jornais para retratar a universidade como um lugar que coloca os padrões políticos à frente dos profissionais. Não admira que grande parte do público tenha formado a impressão de que a academia não é confiável.
Deveria ser rotina para as universidades receber acadêmicos conservadores e manter bolsas de estudos conservadoras. As universidades são os pilares da constituição do conhecimento. Elas treinam estudantes e pesquisadores nos métodos e costumes da investigação estruturada; constroem e salvaguardam o conhecimento; fazem as perguntas que os outros ignoram ou evitam.
E assim, se as universidades são fechadas, apenas impondo algumas opiniões sobre todos os outros ou perseguindo a agenda política de alguém, então a constituição do entendimento também é uma armadilha. Se as universidades fomentam culturas de conformidade e não de crítica, se trafegam em ortodoxias politizadas e religiões seculares, então o vencedor não é a justiça social, mas a trolagem. O que, no caso, é apenas desvantagem.