Direito ao esquecimento é 'incompatível' com Constituição, diz relator Dias Toffoli
G1 – 04/02/202
Rosanne D’Agostino
O ministro Dias Toffoli afirmou nesta quinta-feira (4), ao votar em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), que o chamado “direito ao esquecimento” é incompatível com a Constituição.
Toffoli é relator de um recurso em julgamento no tribunal que discute se alguém pode reivindicar que meios de comunicação sejam impedidos de divulgar fatos e informações de um acontecimento que considere prejudicial ou doloroso.
O julgamento começou nesta quarta-feira (3), teve continuidade nesta quinta e deve ser retomado na próxima semana, com os votos dos demais dez ministros. A decisão dos ministros terá repercussão geral, isto é, servirá de referência para julgamento de casos semelhantes em outras instâncias da Justiça.
O debate, que confronta liberdade de expressão e direito à intimidade, chegou ao STF em razão de um caso ocorrido em 1958. Após uma tentativa de estupro, a jovem Aída Curi, então com 18 anos, foi jogada de um terraço em Copacabana, no Rio de Janeiro, a fim de que o caso parecesse suicídio.
A família argumenta que, além de tristeza e indignação com o crime, o noticiário da época deu notoriedade ao sobrenome Curi, que teria ficado estigmatizado.
Para o ministro, impedir o acesso a informações verdadeiras e obtidas de forma legal fere a liberdade de expressão.
Toffoli afirmou que a ideia de direito ao esquecimento é “incompatível com a Constituição” quando se refere “a fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social análogos ou digitais”.
“É incompatível, incompatível, com a Constituição, a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais”, afirmou o ministro.
Segundo ele, “eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais — especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e também as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.
O ministro apontou a inexistência no ordenamento jurídico brasileiro “de um direito genérico com essa conformação, seja expressa ou implicitamente”.
Para Toffoli, “a passagem do tempo, por si só, não tem o condão de transmutar um dado contido nela de lícito para ilícito” e que é preciso coibir abusos, mas “não se protege informações e dados pessoais, porém, com obscurantismo”.
O ministro afirmou ainda que a internet “deu início a uma nova fase ao associar o problema do esquecimento ao tratamento e à conservação de informações pessoais na rede”, mas que a lei não prevê um direito genérico de excluir dados lícitos em meio digital.
Sobre a liberdade de expressão, Toffoli afirmou que tema “envolve toda a coletividade, que será cerceada de conhecer os fatos em toda a sua amplitude”.
“Ao pretender o ocultamento de elementos pessoais constantes de informações verdadeiras em publicações lícitas, ela [pretensão do direito ao esquecimento] finda por conduzir notícias fidedignas à incompletude, privando os seus destinatários de conhecer, na integralidade, os elementos do contexto informado”.
Argumentos da família
Os familiares de Aída Curi pedem indenização pela veiculação em 2004 no programa “Linha Direta – Justiça”, exibido pela TV Globo, de reportagem que reconstituiu o assassinato.
A defesa dos herdeiros afirma que, embora o tempo tenha se encarregado de levar a “sinistra notoriedade que por tantos anos os perseguiram”, a tragédia voltou a ter dimensão pública com o programa.
“Não há que se falar em liberdade de expressão e imprensa quando o ato cometido pela empresa jornalística atinge direitos de personalidade”, argumenta o pedido.
O pedido de indenização foi negado nas instâncias inferiores da Justiça.
Toffoli também rejeitou a indenização. “Passados agora mais de 60 anos do assassinato, as mulheres em nosso país são mais ou menos respeitadas?”, questionou.
“Casos como de Aída Curi, Ângela Diniz, Daniela Perez, Eloá Pimentel, Marielle Franco e, recente, da juíza Viviane Vieira, entre tantos outros, não podem e não devem ser esquecidos”, argumentou.
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Repercussão geral
O julgamento no STF tem repercussão geral, ou seja, servirá de base para outros semelhantes, mas a expectativa é que os ministros também definam — caso o direito ao esquecimento seja reconhecido — a quais casos esse entendimento pode ser aplicado, incluindo a internet.
Diante da possibilidade de um debate mais amplo, diversas entidades se inscreveram como interessadas na causa, entre as quais a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji); o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro/ITS; a Artigo 19 Brasil, organização britânica de direitos humanos; o Instituto Brasileiro de Direito Civil; o Google Brasil; e a Yahoo! do Brasil.
Em setembro do ano passado, o Instituto Vladimir Herzog também pediu para contribuir com o debate a fim de discutir “em que medida os fatos da nossa vida em sociedade devem ser relembrados, sobre os efeitos que essas narrativas trazem à baila com o decurso do tempo e a proposição de um regime jurídico constitucional do direito à memória”.
Para a entidade, as reproduções de acontecimentos verídicos, muito embora dolorosos na esfera privada (em especial aos seus familiares, sem sombra de dúvidas), têm “inegável” conteúdo carregado do “mais alto teor de interesse público para a coletividade e que, por esse motivo, jamais deve ser esquecido, inclusive para não ser repetido”.
A Procuradoria Geral da República apresentou parecer pela rejeição do recurso, afirmando que o direito ao esquecimento não pode ser absoluto e que a veiculação de fato de conhecimento público “representou regular exercício dos direitos à liberdade de imprensa e de expressão”.
A emissora afirma que o programa Linha Direta é jornalístico e tinha como objetivo “relatar fatos históricos, do interesse de toda a coletividade, relacionados a crimes de grande repercussão e seus respectivos julgamentos pelo Poder Judiciário”.
A defesa incluiu no processo um parecer do professor de direito constitucional Daniel Sarmento, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, segundo o qual o direito ao esquecimento não está previsto no ordenamento jurídico.
“As liberdades de expressão e de imprensa configuram direitos preferenciais na ordem constitucional brasileira. Elas ostentam prioridade ‘prima facie’ em casos de colisão com outros princípios, e a restrições que lhes são impostas estão sujeitas a uma série de requisitos, que o suposto ‘direito ao esquecimento’ não atende. Não há base constitucional ou legal para tal restrição”, avaliou Sarmento.
Em 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia reconheceu o direito de alguém não apenas ser esquecido, mas a possibilidade de apagar dados pessoais da lista de resultados de busca na internet.O Google Brasil afirma que, desde então, vem sendo alvo de milhares de pedidos de remoção de conteúdo com esse fundamento, em escala global.
O Brasil é um dos países com maior número de registros e ainda há muita divergência nas decisões sobre remoção de conteúdo.
“Não há qualquer razão para supor que o valor intrínseco da liberdade de expressão seria menor nos meios digitais”, afirma a Google.
“Muito ao revés, as características desse ambiente apenas reforçam esse valor, na medida em que democratizam a difusão de ideias e fomentam o pluralismo.”
A Abraji apresentou estudo segundo o qual os políticos e os partidos são os que mais acionam o Judiciário para impedir o acesso à informação sobre si, principalmente em anos eleitorais.
“Daí a importância de se prestigiar o direito à informação, impedindo que um conceito tão incipiente seja adotado”, argumentou a entidade.