Demonização da mídia eleva ataques a jornalistas na Europa, dizem entidades

Demonização da mídia eleva ataques a jornalistas na Europa, dizem entidades

23 de março de 2021
Última atualização: 23 de março de 2021
Helio Gama Neto

FOLHA DE S.PAULO – 19/03/2021

Ana Estela de Sousa Pinto

No Reino Unido, o filho recém-nascido de uma repórter investigativa é ameaçado de estupro. Na Alemanha, jornalistas que cobriam manifestações são espancados. Na Itália, o presidente da federação de jornalismo sofre tentativas de hackeamento. Na Holanda, uma TV contrata seguranças para proteger suas equipes em manifestações.

Multiplique por 100 e esses exemplos chegarão às quase 400 ameaças contra a liberdade de imprensa acompanhadas no ano passado pelo Media Freedom Rapid Response (MFRR), entidade criada para oferecer apoio a jornalistas ameaçados.

O número real de agressões é maior, porque a entidade acompanha apenas os 27 países da União Europeia (UE) e os cinco candidatos a fazer parte do bloco (Macedônia, Montenegro, Turquia, Sérvia e Albânia). Além disso, muito casos não são denunciados.

“Há motivos de preocupação em todo o bloco europeu, e o ambiente é crescentemente hostil”, diz Nik Williams, coordenador do MFRR. No relatório mais recente com divisão por países, que cobre de julho a outubro de 2020, foram 50 jornalistas atacados apenas nos três maiores países da União Europeia: 31 na Alemanha, 7 na França e 12 na Itália.

Em outro levantamento recém-publicado, da União para a Liberdade Civil na Europa (Cleu), Espanha, Croácia, República Tcheca e Bulgária aparecem também como locais em que a agressividade contra a mídia é crescente.

A hostilidade crescente é atribuída ao sentimento antimídia instigado por políticos e grupos polarizados. “A demonização dos jornalistas, chamando-os de traidores ou disseminadores de fake news, é o primeiro passo antes de ataques concretos”, afirma Williams.

Segundo ele, quando figuras públicas desvalorizam e desclassificam seguidamente os jornalistas, incentivam também a violência anônima ou praticada pela população: “O poder público deixa claro que não pretende proteger a mídia se ela for atacada”.

Um dos exemplos mais recentes foi o ataque pessoal feito pelo primeiro-ministro da Eslovênia, Janez Jansa, à repórter Lili Bayer, do site Politico, neste mês. O governante, que em 2016 foi processado por chamar duas repórteres de “prostitutas aposentadas” e perguntar o preço de seus “serviços baratos”, chamou a jornalista de mentirosa por uma reportagem que descreve justamente sua relação com a mídia.

Bayer ouviu mais de uma dúzia de repórteres, diretores de meios de comunicação, acadêmicos e ativistas que atribuíram a Jansa um clima de ódio crescente contra jornalistas no país. Declarações do premiê são seguidas de ameaças por telefone e internet e, segundo os entrevistados, a pressão impede a cobertura de temas como os investimentos húngaros na Eslovênia e movimentos de extrema direita no país.

O caso é especialmente preocupante, afirmam os ativistas, porque a Eslovênia assume a presidência rotativa do Conselho da UE no final deste ano.

Williams também cita o assassinato em Malta de Daphne Galiza, repórter que expusera casos de corrupção, como um exemplo da escalada de violência iniciada por autoridades. Durante anos houve assédio, ameaças e ações na Justiça, diz ele: “Nem todos os que assediam vão matar, mas dificilmente a agressão concreta aparece do nada. Há avisos anteriores”.

A impunidade retroalimenta a violência, e, mesmo quando há investigação, “só se pune quem apertou o gatilho ou colocou a bomba, e não quem pagou por isso”, segundo Williams. “Faz-se justiça incompleta, para satisfazer a opinião pública ou pressões políticas, mas não há justiça sistêmica.”

O ativista vê, porém, um lado positivo no aumento dos alertas: o número cada vez maior de repórteres e veículos denunciando agressões. “Por muitos anos os jornalistas normalizaram como se isso fosse parte do trabalho, algo a suportar. Achavam normal alguém os ameaçarem de estupro ou de morte.”

Consórcio de entidades cofinanciado pela Comissão Europeia, o MFRR também dá aos jornalistas afetados apoio prático e jurídico —algo cada vez mais relevante, porque uma das tendências observadas é o aumento de processos judiciais contra jornalistas ou veículos. No trimestre de julho a outubro, o MFRR contou mais de 55 processos contra jornalistas na Polônia e 29 na Eslovênia. Na Alemanha, um blog que checa informações foi processado por questionar a resposta do governo à pandemia de Covid-19.

Williams diz que é difícil precisar quando a situação começou a piorar no continente. “É como o sapo na panela. A temperatura vai se elevando aos poucos, e não podemos correr o risco de ficar tarde demais.”

As tensões ficaram mais expostas durante o ano passado, devido à pandemia de Covid-19, mostra o relatório do MRFF. Um quarto dos incidentes contra veículos ou jornalistas ocorreu durante protestos, considerados o contexto mais perigoso para jornalistas europeus em 2020: jornalistas foram atacados fisicamente em 29,2% dos casos, e ficaram feridos em 10,4%.

GOVERNOS DRIBLAM CONTROLE NA UNIÃO EUROPEIA

Hungria e Polônia são os casos mais críticos de perda de pluralismo, captura pelo Estado e nacionalização de veículos, dizem as entidades, mas os problemas são mais disseminados.

Autoridades dos três Poderes estão por trás de ataques a jornalistas em 23,8% dos alertas feitos na Europa em 2020 ao MRFF. Em setembro, na reabertura do Parlamento búlgaro em um novo prédio, jornalistas que cobriam as atividades parlamentares foram confinados a uma sala no porão.

Entrevistas com deputados passaram a ser filtradas e, nas coletivas, há controle sobre o assunto que será abordado. Desislava Rivoza, repórter de TV que cobre o Legislativo do país desde 1998, diz que a medida restringe fortemente seu trabalho. “Antes, se havia um caso de corrupção, eu abordava o parlamentar. Se ele não quisesse comentar, isso falava por si mesmo. Agora não posso mais escolher quem entrevistar.”

A presidência da Casa ignorou os protestos de veículos e associações jornalísticas, diz Rizova. A proximidade de novas eleições gerais devem paralisar qualquer discussão sobre o caso, porque o Parlamento renuncia semanas antes do pleito.

Segundo Jamie Wiseman, especialista em Europa no Instituto Internacional de Imprensa (IPI), baseado em Viena, a UE precisa reagir para que ataques como os da Hungria e da Polônia não se disseminem.

Ainda que a Europa tenha hoje níveis elevados de liberdade de imprensa no mundo, ele afirma que “quanto mais os ataques ao pluralismo e à independência da mídia continuarem na Hungria e na Polônia, mais eles serão replicados em outros países, agora e no futuro, e mais vazia se tornará a democracia”.

Wiseman vê especial gravidade na ação do governo húngaro, que “desmantelou sistematicamente o pluralismo e a independência jornalística na última década, alcançado um nível de controle da mídia sem precedentes no bloco europeu”. O modelo está sendo replicado na Polônia, afirma.

Williams, do MFRR, espera alguma mudança quando a UE implantar seu novo Mecanismo de Estado de Direito, que impõe sanções a governos que avançam sobre liberdade jornalística ou pluralidade da mídia.

“O problema é que muito do que vemos na Hungria e na Polônia, considerados isoladamente, são atos legais. Comprar e vender empresas de mídia, em si, é um ato legal. O contexto —se os negócios estão formando um conglomerado pró-governantes— é que os faz problemáticos”, afirma ele.

Wiseman concorda: “Individualmente, cada ataque parece um caso isolado. No conjunto, são uma campanha de pressão deliberada”. Para ele, a Comissão Europeia precisa ir além do Mecanismo de Estado de Direito nos casos já em julgamento, como duas queixas oficiais de que a Hungria minou o pluralismo dos meios de comunicação.

Pesquisas apontam que 80% da mídia no país está nas mãos de pessoas ligadas ao premiê Viktor Orbán. Segundo denúncias, num plano deliberado de concentração de mídia, investidores pró-Orbán “doaram” — após receberem financiamento público— 467 veículos para a Kesma, central de mídia sob controle do governo húngaro. “O fato de tais abusos permanecerem sem resposta apenas inspira outros governos da UE a fazerem o mesmo”, afirma o especialista do IPI.

VEJA OS NÚMEROS
378 alertas de agressão à mídia foram feitos em 2020, com 1.159 pessoas ou veículos atacados, em 29 países
25,9% das agressões ocorreram em manifestações
22% do total de incidentes envolveu agressão física a jornalista; 9% ficaram feridos
Em 9,8% dos casos jornalistas foram detidos ou presos ao fazer seu trabalho
O agressor foi um policial em 21,4% das vezes
Funcionários públicos, parlamentares, membros do governo ou do Judiciário foram autores de 23,8% das agressões


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Helio Gama Neto