COM INTERNET 3G, CUBANO GANHA INFLUÊNCIA E ACABA PROIBIDO DE SAIR DE CASA
ÉPOCA – 23/08/2019
CAROL PIRES
Abraham Jimenez Enoa, jornalista e criador da revista online El Estornudo, já havia sido proibido de viajar para fora de Cuba. No último dia 17, o governo passou a não permitir que ele saia de casa.
Em 25 de novembro de 2016, acordei já tarde com a notícia de que Fidel Castro morrera naquela madrugada, por volta de 1h30. Meu primeiro impulso foi escrever para Abraham Jimenez Enoa, um jornalista negro de 30 anos, dono de um texto primoroso e divertido, e também o melhor amigo que tenho em Cuba. Já eram quase 10 horas da manhã e, certa de que ele estaria nas ruas acompanhando a repercussão, disse apenas: “Me conta”.
Abraham respondeu despretensiosamente: estava de bobeira, cuidando da casa de uma amiga que estava no México. Insisti: “Mas e o Fidel? É como se nada tivesse acontecido?”. “Exato”, respondeu, “Às vezes ele sai e aparece e pronto. É um gato. Parece que tem sete vidas”.
Só então me dei conta de que a morte de Fidel tinha viralizado para o resto do mundo, mas ainda não para os cubanos, que naquele momento não tinham acesso a internet no celular e precisavam recorrer a pontos de wifi públicos acessíveis com cartões pré-pagos. Abraham, claro, saiu correndo. No início daquele ano, tinha lançado uma revista online, El Estornudo , a primeira publicação de jornalismo narrativo em Cuba.
De lá para cá, mudanças no cenário político cubano prenunciaram grandes mudanças que nunca chegaram. Abraham já tem serviço de internet 3G no celular, disponível em Cuba desde dezembro do ano passado. Mas a El Estornudo – que já foi premiada com um Prêmio Gabriel García Márquez em 2017 – terminou bloqueada para leitura dentro de Cuba. E Abraham foi proibido de sair do país até junho de 2021.
No último sábado, dia 17, Abraham foi impedido também de sair de casa. “Desde ontem à noite começaram as chamadas. Ao telefone fixo e ao móvel. Continuaram chamando bem cedo hoje. Há meia hora, tentei sair de casa e não pude. Dois agentes da Segurança de Estado me impediram. Disseram que não posso sair da minha casa. E se o fizer, me levarão preso. Seguem de guarda lá embaixo”.
Desta vez, conectado à internet, e com a possibilidade de avisar amigos em tempo real, Abraham recebeu o apoio possível. Dentro e fora de Cuba, passamos a publicar em nossas redes sociais que estávamos, ainda que de longe, observando o que passaria com ele. Era uma tentativa, talvez ingênua, mas uma tentativa enfim, de protegê-lo. No post dele, uma amiga cubana comentou: “No nos matan pero no nos dejan vivir”.
Abraham começou sua carreira como jornalista escrevendo para um site norte-americano, o OnCuba, o que criou uma cizânia em seu primeiro emprego público, no Ministério do Interior, onde servia como cadete após concluir a universidade de comunicação. Bom escritor, chamou atenção de outros veículos, como a revista mexicana Gatopardo , onde assina, hoje, uma coluna sobre como viver preso na ilha. Em um de seus primeiros textos, contou como pode viver sua paixão clandestina pelo futebol internacional assistindo às partidas do Real Madrid na casa de um vizinho que tinha uma antena parabólica (e terminou preso por sete anos por isso porque, ainda hoje, é ilegal possuir uma por serem consideradas um veneno ideológico). Recentemente, narrou o surrealismo de ter parado por um guarda de trânsito que lhe pediu como propina o pagamento de um sorvete.
Abraham está preso na ilha porque escreve. A justificativa oficial, porém, é outra. Abraham sonhava em ser narrador esportivo, mas não tinha sido um bom aluno no ensino médio. Receoso de que não passaria no vestibular, acatou a sugestão de seu pai e entrou para o programa Cadetes Insertados, que abria vagas para estudantes cursarem os cinco anos universitários com a condição de que, em seguida, trabalhassem no ministério do Interior. Passou três anos ali, entediado, sem sinal de que seria liberado do serviço obrigatório. Até que um dia pediu demissão. Seu chefe explodiu. “Ódio visceral”, conta Abraham. Mandado para casa, só seria chamado para assinar sua liberação um ano e seis meses depois.
Abraham já estava fazendo barulho com a revista El Estornudo, quando lhe disseram que, ao assinar sua liberação do serviço, estaria baixo uma lei imigratória que não o deixaria sair do país até 2 de junho de 2021. Uma justificativa plausível (na cosmologia cubana), é que ele lidava, no trabalho, com informações sensíveis, o que ele nega. “Se eu tivesse tido informação confidencial em mãos, já estariam falando de mim como o Snowden cubano, mas não foi assim “, escreveu certa vez.
“Muitos poucos países, como Cuba, proíbem funcionários estatais de sair do país. Nenhum outro, além de Irã ou Coreia do Norte, talvez, teriam suspendido minha liberdade de circulação por cinco anos sem que isso fosse ilegal”, me explicou Abraham por Whatsapp. Em 2017, foi detido por agentes de segurança do Estado. Por onze horas, foi interrogado – leram seus escritos no computador, o ameaçaram de prisão, insinuaram que poderiam repreender sua família e amigos, e deixaram claro que sabiam tudo sobre sua vida.
Nos dois anos que se passaram desde então, Abraham viu seus melhores amigos e uma namorada irem embora para os Estados Unidos e para o México. Talentoso e adorado, foi chamado para incontáveis viagens, congressos, cursos, palestras e festivais. Faltou a todos. Já teve pelo menos quinze pedidos de visto de saída negados. “Perdi contatos, reconhecimentos, dinheiro e amores”. Perdeu também a proximidade com seu pai, por divergências ideológicas. Seu avô paterno chegou a ser segurança de Fidel Castro e Che Guevara.
Mas Abraham não é o único encurralado. “É uma medida recorrente utilizada pelo governo para quebrar os jornalistas independentes. Porque, você sabe, viajar em Cuba é vital, é uma das poucas maneiras que os cidadãos têm de se chocar com o mundo real e sair do surrealismo cubano.” Com outros jornalistas, porém, é comum chegarem até o aeroporto e serem avisados, já na fila da imigração, que estão em uma lista negra. Não explicam por que e sequer dá pra reclamar. Reclamar para quem? Mas, eventualmente, os deixam sair sem tampouco dizer por que, agora, sim. No caso de Abraham, ele sequer tem um passaporte. “Me sinto preso.”
Depois que Fidel, o gato de sete vidas, morreu, Raúl Castro passou o poder a Miguel Díaz-Canel, mas sua ascensão burocrática em nada mudou a vida das pessoas de maneira prática. “Hoje Cuba é um navio à deriva. Um navio deteriorado que ficou preso no meio de um oceano, cujo único e insignificante movimento é causado pelas marés. A tripulação anseia por ver a terra e deixar o naufrágio, mas seu alto comando insiste em mover o armamento remando na mesma latitude habitual”.
A reforma constitucional concluída há poucas semanas, por exemplo, estabelece que os únicos veículos de comunicação autorizados a circular no país são aqueles subordinados ao Partido Comunista – ou seja, o jornalismo independente, como o de Abraham no El Estornudo, está fora da lei. “Se quisessem me levar para a prisão, eles estariam amparados pela lei. Poderia acontecer a qualquer momento com qualquer colega ou comigo.”
A chegada do 3G, ele me disse, é um momento crítico para Cuba. “As pessoas se empoderaram nas redes sociais, os veículos independentes alcançaram mais seguidores e tudo isso provoca a sociedade a ter outra visão e não só a imposta pelo governo, como acontecia”. Desde dezembro, início do serviço, o país viu poucos, mas inéditos protestos. Houve pouco público e alguma repreensão. Mas é possível que, com o aumento da participação, o governo aumente as investidas. Na tática de atirar no mensageiro para evitar a chegada da mensagem, os jornalistas são o que estão mais expostos.