A PISTOLA, A ‘BÍBLIA’ E AS FAKE NEWS DE SANTIAGO ABASCAL

A PISTOLA, A ‘BÍBLIA’ E AS FAKE NEWS DE SANTIAGO ABASCAL

22 de novembro de 2019
Última atualização: 22 de novembro de 2019
Helio Gama Neto

ÉPOCA – 22/11/2019

Alessandro Soler, de Madri

Santiago Abascal, de 43 anos, é o tipo de político pistola na cintura, Deus no coração e sobrenome ligado à ditadura de Francisco Franco, que governou a Espanha de 1939 a 1975. Seus discursos costumam ter como alvo “a violência provocada pelos imigrantes”, “a ditadura progressista”, “a imposição da agenda gay”, “a injusta lei de violência de gênero que castiga os homens com denúncias falsas das mulheres” e “o independentismo que quer destruir a Espanha e os espanhóis”. Como um Dom Quixote da extrema-direita, Abascal oferece soluções supostamente simples a problemas complexos. À frente do partido Vox, que saiu como a terceira maior força política espanhola nas eleições de novembro, Abascal se mostrou um habilidoso usuário do ferramental que se tornou marca registrada de populistas mundo afora. Usando redes sociais e debates, espalhou dados falsos ou distorcidos, rebatidos pelos meios de comunicação, mas acolhidos e reproduzidos por um exército de seguidores desencantados com a política tradicional.

Defensor de soluções de força contra regiões independentistas — estado de sítio, ilegalização de partidos — e os imigrantes — devoluções instantâneas, construção de muros pagos pelo Marrocos ao redor das cidades de Ceuta e Melilla —, Abascal encarna a hipermasculinidade em sua persona das redes sociais. Em fotos e vídeos no Instagram ou no Twitter, pode ser visto puxando ferro, correndo, montando cavalos, fazendo trilha e agarrando um touro pelos cornos. Peito empertigado, mirada triunfal ao longe, é uma espécie de Vladimir Putin latino. Virou ícone gay.

Confrontado neste ano com o tema num popular programa de TV do canal Antena 3, desconversou e apresentou sua visão sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo — “é uma união civil como poderia ser a união entre duas irmãs viúvas, no fim da vida, para cuidar uma da outra” — e sobre a adoção de crianças por homossexuais — “se não tem um hétero que queira a criança, aí o gay pode adotar”. A entrevista foi uma exceção à regra de fugir da imprensa. O Vox tem uma lista de veículos “hostis” vetados, entre eles o diário El País , a rede de TV La Sexta e o jornal digital eldiario.es. Em duas ocasiões, neste ano, ÉPOCA pediu entrevistas com ele. Em março, a resposta foi negativa. Agora, o pedido foi ignorado.

Embora se apresente como anti-establishment, o primeiro emprego de Abascal, formado em sociologia, foi, aos 23 anos, o cargo de vereador em Laudio, 20 quilômetros ao sul de Bilbao, na região do País Basco. De lá para cá, acumulou cargos eletivos ou indicações a autarquias e fundações ligadas ao Partido Popular (PP), de direita. Foi nessa agremiação que ele se forjou, seguindo os passos do avô, prefeito biônico de um vilarejo durante a ditadura, e do pai, integrante do PP. A ligação do clã ultracatólico com o regime franquista lhe rendeu constantes ameaças do extinto grupo terrorista ETA, responsável por 900 assassinatos em mais de quatro décadas de atuação. Abascal já admitiu que a vida sob a sombra do terror nacionalista basco o marcou para sempre, despertando-lhe o forte repúdio às ideias de independência de regiões espanholas como o País Basco e a Catalunha. “Tenho uma ( pistola ) Smith & Wesson em casa. A princípio, era para proteger meu pai do ETA. Agora, meus filhos. Defendo que todo mundo possa ter uma arma”, disse.

Seu salto à arena nacional foi concomitante à aproximação com Esperanza Aguirre, uma poderosa política da capital espanhola. Ex-governadora da região de Madri suspeita de enriquecimento ilícito e envolvimento num esquema de corrupção e caixa dois do PP conhecido como Caso Púnica, Aguirre nomeou Abascal presidente de uma fundação pública pela qual, mesmo sem trabalhar ou desenvolver atividades auditáveis, ele recebeu o equivalente a R$ 33 mil por mês em 2013. Quando o escândalo veio à luz, ele teve de renunciar. Hoje, é um crítico diligente do desperdício de dinheiro nos governos regionais.

Já fora do PP, em 2014, Abascal prometeu que os candidatos de um recém-criado Vox seriam escolhidos para sempre em primárias. Em fevereiro deste ano, mostrou que mudou de ideia depois de ganhar plenos poderes para indicar os nomes das disputas. Há alguns anos, atacava o financiamento público aos partidos. Desde que seu Vox começou a ganhar peso no parlamento, não devolveu nem 1 centavo aos cofres públicos. Extrema coerência não costuma rimar com carreiras políticas, mas o que chama a atenção no caso de Abascal é o fato de ele forjar sua imagem como alguém contrário ao “jeito de sempre” dos parlamentares. Essa foi uma das razões apresentadas por ele para fundar uma legenda própria — a outra foi a suposta brandura do PP com os separatistas. A ÉPOCA, um político do PP de Madri apresentou uma visão diferente. “Esperanza Aguirre vinha perdendo cada vez mais espaço dentro do PP. Ela e ( o então presidente da legenda e ex-primeiro-ministro ) Mariano Rajoy se detestam. Conforme o grupo de Rajoy ganhava plenos poderes, Abascal entendeu que já não tinha clima para ele ali, tão dependente de Aguirre para crescer. Decidiu ir embora.”

Não deixa de ser irônico que a grande âncora de Abascal por anos tenha sido uma mulher. Ele é um teórico dos papéis biológicos. Já disse que a mulher não pode competir com o homem em certas áreas e advoga por “matrimônios tradicionais”, nos quais elas se encarregariam de cuidar da família. Segundo pesquisas, mais de 60% dos votos do partido são de homens, com os quais ele se compadece pelos “milhares de denúncias falsas” de mulheres amparadas na lei de violência machista. Na definição de dirigentes do Vox, “o feminismo é um câncer”. “A tática deles é deslegitimar o caráter de problema público da violência de gênero, levando-o ao ambiente privado, relativizando a agressão pelo fato de o homem estar bêbado, por exemplo”, descreveu a socióloga María Silvestre Cabrera.

A imprensa tentou fazer o trabalho de desmentir dados distorcidos apresentados por Abascal durante o único debate da campanha em novembro, já que seus oponentes não chegaram a demonstrar reação — muito provavelmente por medo de perder votos. Com o caminho livre, o líder do Vox descarregou uma metralhadora de acusações contra estrangeiros. Defendeu a expulsão dos menores imigrantes desacompanhados, responsabilizando-os por uma inexistente escalada de violência nos bairros onde há centros de acolhida. Em outro momento, disse que 70% dos estupros coletivos no país são praticados por cidadãos de outros países — não há dados conclusivos sobre o tema. Um levantamento do governo em 2017 mostrou que só 0,06% dos homens imigrantes estiveram envolvidos em crimes sexuais e que 70,1% dos estupros foram cometidos por espanhóis. A enxurrada de críticas da imprensa, no dia seguinte, veio tarde. Como em outros lugares, na Europa e no mundo afora, onde a extrema-direita avança, as fake news surtiram efeito. O tsunami do Vox varreu partidos rivais e colocou Abascal no centro da política espanhola.


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Helio Gama Neto