FOLHA DE S.PAULO – 19/07/2020
Hélio Schwartsman
O mundo será bem menos interessante se não pudermos discordar nem das locuções com as quais se defendem as causas inatacáveis.
No que talvez seja o melhor exemplo de lacração que destrói as próprias razões, em 2006, muçulmanos saíram às ruas de várias cidades em manifestações, muitas delas violentas, para protestar contra uma aula magna do papa Bento 16 em que ele supostamente havia afirmado que o islamismo era uma religião violenta.
Em 2020, um grupo de 550 acadêmicos acaba de publicar uma carta em que pede que a Sociedade Linguística da América retire Steven Pinker de sua lista de membros distintos. Eles alegam que o linguista e psicólogo cognitivo minimiza as injustiças raciais e abafa as vozes daqueles que sofrem indignidades sexistas e raciais.
O que dá o toque papesco à história é que, poucos dias antes da carta, Pinker assinara um manifesto em que, ao lado de 152 intelectuais, incluindo pesos-pesados da esquerda e da direita, como Noam Chomsky e Francis Fukuyama, denuncia a política de lacrações que se apossou do debate público e pede que as discussões se deem em torno de ideias e argumentos, sem interdições “a priori” nem condenações ao ostracismo.
Algo revelador do “Zeitgeist” é que, embora Pinker tenha escrito pelo menos três livros em que detalha suas visões sobre raça e gênero, a carta o critica principalmente por tweets postados anos atrás, sem nem entrar no mérito de seus argumentos acadêmicos, dos quais se pode, é claro, discordar.
Para funcionar bem, sociedades dependem de um equilíbrio fino entre conformidade e mudança. Quando, em nome de uma suposta clareza moral, passamos a punir desvios da ortodoxia com penas piores do que a eventual derrota argumentativa, criamos um ambiente propício à autocensura, que, no longo prazo, compromete nossa capacidade de questionar consensos do passado e avançar socialmente. Basta lembrar que, não muito tempo atrás, a visão oficial era a de que mulheres deviam obedecer a seus maridos e homossexuais tinham de ser reprimidos.
No Brasil, a tendência também está presente, mas assume uma distribuição mais democrática, já que aqui as lacrações não vêm só da esquerda mas também da direita, que já conseguiu fechar exposições artísticas (“Queermuseu”) e tentou impedir seminários acadêmicos (Judith Butler).
No lance mais recente, militantes da causa homossexual deflagraram protestos que fizeram com que o jornalista Leandro Narloch fosse demitido da CNN Brasil. O detalhe curioso é que Narloch sustentava a posição favorável aos homossexuais, mas não com as palavras nem nos termos preferidos pelos militantes. E, convenhamos, o mundo será um lugar bem menos interessante se não pudermos discordar nem das locuções com as quais se defendem as causas inatacáveis.