Ataques ao jornalismo e à ideia de verdade ameaçam a democracia, diz Timothy Snyder

Ataques ao jornalismo e à ideia de verdade ameaçam a democracia, diz Timothy Snyder

24 de junho de 2019
Última atualização: 24 de junho de 2019
Helio Gama Neto

ÉPOCA – 20/06/2019

Guilherme Amado

Ataques ao jornalismo e à ideia de verdade ameaçam a democracia, diz Timothy Snyder
Historiador americano e professor de Yale critica Bolsonaro, prevê a derrota eleitoral de Trump e acredita que o Reino Unido continuará na União Europeia.

1. Em seu novo livro, Na contramão da liberdade (Companhia das Letras), o senhor faz distinção entre dois fenômenos que, em sua visão, ameaçam a democracia mundo afora: a política da inevitabilidade, baseada na crença de que a história acaba com o predomínio do modelo de democracia liberal, e a política da eternidade. Qual é a diferença entre as duas?

A política da inevitabilidade é uma noção de progresso em que o futuro vai automaticamente ser como o presente, somente melhor. É uma noção de que teremos democracia porque o capitalismo ou alguma força maior vai nos trazê-la. A ideia de inevitabilidade é ruim para a democracia porque ela remove todas as questões éticas, como se o cidadão não influenciasse, não tivesse responsabilidade sobre seus atos. E prejudica nosso senso para perceber ameaças, porque, se a democracia é automática, não reconhecemos que há alternativas no caminho. Quando a política da inevitabilidade falha, vem em seguida o que eu chamo de política da eternidade. É uma ideia diferente de tempo. Em vez de haver um futuro único para todos, não há futuro.

2. Como assim?

Nós paramos de falar de futuro e passamos a falar do passado. Sempre um passado em que nós fomos de alguma maneira vítimas inocentes. E foram outras pessoas, do outro lado da fronteira, ou de outro partido político, ou gays, ou minorias ( os culpados ) que sempre estiveram tentando pegar tudo de nós. Na política da eternidade, paramos de prestar atenção aos fatos e só prestamos atenção a nossas emoções, ao que é certo para nós. Portanto a política da eternidade prejudica a democracia porque também não há senso de responsabilidade. Se você olha para ( Donald ) Trump, ( Jair ) Bolsonaro, ( Vladimir ) Putin, ( o primeiro-ministro húngaro, Viktor ) Orbán, o que há em comum é que todos invocam um passado imaginado. Eles não têm ideia de como o futuro vai ser. Todos são muito descuidados com os fatos e estão agressivamente tentando destruir a factualidade, o que torna difícil o funcionamento da democracia.

3. Em seu livro, a Rússia de Putin tem um papel central na ameaça mundial às democracias. Por quê?

Sempre me perguntam por que a Rússia é tão importante se não tem uma economia tão grande e se não cria tecnologias. Por que ela importa tanto? A Rússia importa porque ideias importam, e a Rússia está sendo capaz de fazer essa transição da inevitabilidade para a eternidade. Era claro um tempo atrás que, para a Rússia, a democracia não era automática. E na Rússia atual existem três fatores que fazem a política da eternidade possível. Há uma concentração muito forte de riqueza, o que significa que muitos cidadãos não terão um futuro, porque eles não podem mudar de vida. Os ricos estão ficando mais ricos por causa dos hidrocarbonetos, do gás natural e do petróleo. Os eleitores não querem falar de futuro porque o futuro é aquecimento global, e eles são responsáveis por isso. E também porque na Rússia há um tremendo problema de sucesso, porque todos sabem que a democracia lá é um fingimento. Ninguém sabe o que vai acontecer depois de Putin e ninguém pode falar sobre isso. O livro é sobre como a Rússia defende essa política da eternidade tentando espalhar ideias similares para outros lugares porque, ao defender que as coisas não podem melhorar, é preciso provar isso para seu povo mostrando que as coisas também não são melhores em outros países. E a Rússia está tendo sucesso, basta ver o que ocorreu nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha.
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4. Quem acompanha Putin de perto costuma dizer que ele vê os ataques aos Estados Unidos como se estivesse dando o troco.

Nós devemos levar os russos a sério e aceitar que eles tomaram as decisões deles e que a escolha deles é defender seu sistema atacando outros. Do ponto de vista dos russos, é uma defesa porque a existência do Ocidente é uma ataque a eles. A existência da União Europeia mostra que o estado de direito é possível, a democracia na Ucrânia mostra que a democracia é possível numa grande ex-República Soviética. Do ponto de vista dos russos, tudo isso é uma ameaça. Nós, democracias ocidentais bem-sucedidas, para eles, não podemos existir.

5. Aonde Putin quer chegar?

Eles não sabem, porque eles não têm ideia de futuro. Antigamente, quando se questionava o statu quo , era porque tinha se uma ideia para substituí-lo. Na União Soviética, tinha-se a ideia de derrotar o capitalismo para substituí-lo pelo socialismo. Hoje, A Rússia não é mais assim. Não há uma ideia alternativa. Tudo que dizem é que o sistema atual é falso, é uma mentira. O sistema atual é baseado em hipocrisia, de maneira que o sistema vai colapsar com suas próprias contradições. Mas eles não têm nenhuma ideia do que vem a seguir.
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6. Como seria o futuro imediato russo?

O futuro imediato deles seria algo como os Estados Unidos e a Europa mais fracos e a Rússia relativamente mais forte. Mas eles não têm uma visão positiva. Eles não têm uma visão de como a Rússia poderia ser um país bom, não têm uma visão para o mundo. Portanto eles não têm visão de futuro, só de como defender o presente. E isso é perigoso, porque é um presente que é definido pelos extremamente ricos, que fazem seu dinheiro vendendo hidrocarbonetos e que por isso são a favor do aquecimento global.

7. O senhor chama Trump de candidato russo. Quais são as evidências para essa afirmação?

Há poucas coisas que eu acrescentaria ao que já aponto no livro. E digo isso porque a campanha russa para eleger Trump foi apenas uma parte de uma política mais ampla, que tem o objetivo de preservar o statu quo russo por meio do ataque a países mais bem-sucedidos. A operação para apoiar Trump foi bem-sucedida e isso é espetacular, mas é o tipo de coisa que a Rússia vinha fazendo desde 2014. Tento mostrar no livro como as técnicas que foram usadas na Ucrânia e na União Europeia também foram usadas nos EUA, com o mesmo resultado.
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8. Dois anos após o senhor lançar seu livro manifesto, Sobre a tirania, em que elencou 20 lições para combater a escalada do autoritarismo no mundo, o que mudaria no que escreveu?

Volta e meia ouço de pessoas que estão lendo Sobre a tirania que o livro ainda reflete as preocupações delas sobre a realidade atual. E ainda reflete as minhas também. Um dos pontos é o ataque ao jornalismo e o ataque à ideia da verdade. Trump continua chamando jornalistas de inimigos do povo e, mentindo, ele trabalha para minar a noção da verdade como ela é. No fim do livro, eu dizia estar preocupado com algum tipo de golpe. Ainda estou preocupado com isso, mas um pouco menos, porque foi algo tão discutido que seria difícil para Trump. Ele não tem tanto apoio entre as Forças Armadas e o povo, que precisariam apoiá-lo nisso. Continuo preocupado com que Trump, em 2020, não reconheça sua derrota. Mas acho que poucas pessoas o apoiariam. Agora estão mais claros para mim os problemas institucionais da democracia americana. Temos dois partidos que infelizmente dependem muito de um sistema que não estimula os eleitores a votar ou que faz com que uns votos valham mais que outros. Uma renovação da democracia americana deveria ser uma renovação institucional.

9. Trump será reeleito?

Eu acho que ele vai perder e os Democratas vão ganhar. Não acho nem que será apertado. Ele está muito impopular. Há muita gente que não votaria nele de jeito nenhum. Ele sabe disso. Muitos estão preocupados porque há 23 candidatos democratas. Não vejo problema, é parte do processo. Qualquer um dos 23 candidatos pode derrotar Trump.

10. O senhor sempre foi um crítico do Brexit e volta e meia afirma que a Grã-Bretanha não sairá da União Europeia. Mantém que o Brexit não ocorrerá?

Não acontecerá. Três anos depois do referendo, ainda não aconteceu. O Brexit é muito estúpido para acontecer, e acho que muitos na classe política britânica entendem isso.

11. Por que o senhor dedica Na contramão da liberdade aos repórteres?

O livro é dedicado aos repórteres, os heróis de nosso tempo. Eu acredito sinceramente nisso. A grande crise de nosso tempo é a perda da importância dos fatos e da confiança na verdade. Há um problema tecnológico, porque a tecnologia é desenhada para atender a nossas emoções, e não para instruir nossas mentes. Quando ficamos sabendo de algo sobre o lado ruim do dinheiro ou quem está bombardeando quem, é porque há um repórter corajoso que correu riscos físicos para escrever sobre isso. Se queremos preservar o estado de direito e a democracia, precisamos de mais fatos, e a única maneira de humanos poderem entender os fatos é por meio de humanos.
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12. Jair Bolsonaro está tentando se aproximar de Trump e de outros populistas de direita no mundo, como Viktor Orbán. Há interesse deles em Bolsonaro?

É importante para eles terem uma narrativa sobre como seu jeito de fazer política está funcionando ao redor do mundo. E certamente para Trump e para pessoas no topo de sua administração elogiar Bolsonaro é bom. Mas não dá para falar em interesses em comum. É mais uma campanha de propaganda conjunta, em que todos dizem ser contra as elites, contra a corrupção e por aí vai. Os interesses de Trump são mais não ir para a prisão e ganhar dinheiro. Ninguém que tenha realmente tentado cooperar com Trump se saiu bem.

13. O que o senhor tem achado do governo Bolsonaro?

Bolsonaro e Trump têm em comum um jeito depreciativo de falar sobre outras pessoas. Isso afeta muito a atmosfera política. É muito importante em democracias que estejamos aptos a falar com civilidade sobre todos os cidadãos. Não se deve falar sobre a orientação sexual de alguém, ou sobre suas origens étnicas, de maneira derrogatória. Quando isso acontece, transforma-se a democracia em um regime autoritário, uma atmosfera em que as pessoas não são, em primeiro lugar, cidadãos. E há a forma como tratam a crise climática. Trump e Bolsonaro negam que ela seja verdade. Como o Brasil é o dono do pulmão do mundo, essa postura coloca o mundo em risco. Se perdermos a Amazônia, colocaremos em risco nossa sobrevivência como espécie.


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Helio Gama Neto