O futuro da imprensa é estar em tudo: qual o desafio dos jornais nos próximos anos
O GLOBO – 29/07/2020
Pedro Doria
Se estes últimos seis meses deixaram algo claro, é que sociedades livres não vivem sem jornalismo profissional. Sempre foi assim. A democracia moderna e a imprensa nasceram juntas. A ideia de que uma sociedade, coletivamente, pode decidir quem a comanda acompanha a necessidade de uma estrutura que a informe. Uma estrutura que não faça parte do governo, que seja independente. Em uma entrevista, certa vez, a filósofa Hannah Arendt foi mais direta. “O que permite a um totalitário governar é a garantia de que o povo não será informado.” Essa é a história que o primeiro semestre de 2020 conta. Dois séculos e meio depois, as razões que nos levaram à luta por democracia, cidadania e livre imprensa continuam presentes. Agora, com um novo desafio — as transformações que o digital impõe ao mundo.
Não vivemos no mundo pelo qual Hannah Arendt passou, com regimes totalitários de direita e esquerda espalhados por toda parte. Muito menos naquele anterior às Revoluções Liberais. Mas, após duas décadas de liberdade em avanço, mergulhamos num período de surto autoritário, populista, reacionário. É um movimento que se baseia na manipulação da realidade. Mente, distorce, inventa e se utiliza dos novos meios para criar bolhas impermeáveis à informação. Bolhas a partir das quais consegue sequestrar democracias as mais sólidas.
Este é o duplo desafio da imprensa nos próximos anos. Tornar-se nativa digital, o que já está em pleno curso. E recolocar no centro do debate público aquilo no que ele sempre se baseou. Informação. Há pistas sobre como fazer. Está na nossa história.
Naquele momento de nascimento das democracias modernas, a imprensa era marcada por debates, dedicada à longa costura de argumentos. Porque pela primeira vez eram pessoas que precisavam decidir quem seria o governante. Aquela imprensa informava sobre os grandes temas por meio desses artigos de opinião ao mesmo tempo que provocavava leitores a refletir sobre aqueles argumentos. Debater política era coisa que tinha de ser aprendida. Depois que começamos a ter essas conversas, nunca mais paramos.
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Em princípios do século XX, o mundo começou a ver se espalharem grandes metrópoles. Cidades de arranha-céus nas quais já não dava mais para conhecer todo mundo da vila. Impessoais, cheias de anônimos solitários. Ali, os jornais aprenderam que deveriam priorizar notícias, porque os acontecimentos da cidade davam a todos os seus leitores assunto. Quando no bonde dois desconhecidos sabem do mesmo incidente sobre o qual leram, e então se dá uma conversa, surge também outra coisa: a metrópole vira comunidade porque comunidade é isso. Um conjunto de pessoas que têm histórias em comum.
No primeiro momento, o rádio transformou os governantes em figuras míticas, distantes. Não foram poucos os populistas que se aproveitaram da pouca intimidade com um novo meio de comunicação. Mas, com o passar das décadas, o áudio criou proximidade, intimidade. A TV mostrou o horror da Guerra do Vietnã, mas também trouxe para dentro da sala de estar imagens diárias de um mundo grande que tinha, em comum, sua humanidade. Não é à toa que o final dos anos 1960 foi marcado por um amplo desejo de liberdade e, simultaneamente, de confraternização. Ao tornar o mundo menor, mostrou que somos mais semelhantes do que diferentes. No arco da História, as cinco décadas seguintes tiveram por marca o aumento do número de democracias e a ampliação dos direitos individuais aos quais tantas minorias não tinham acesso.
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Essa história da relação entre imprensa, sociedade e desejo de liberdade bate sempre nos mesmos temas. O impacto que novas tecnologias têm na percepção de mundo. A importância do debate público. O papel da informação na consolidação de comunidades baseadas num espírito de cidadania. Cidadania é a palavra-chave, aqui. Ela entrou para nosso vocabulário, claro, quando nascia a democracia. Na Revolução Francesa, aquele instante no qual um povo decidiu que, dali para a frente, era preciso cultuar a ideia de que todos somos iguais em nossos direitos. A imprensa evoluiu muito desde então — mas sempre no mesmo passo da sociedade, na construção dessa cidadania.
Cá dentro das redações de jornais, passamos por muitas fases desde que a internet chegou. O encanto do primeiro site, a criação de blogs, a exploração inicial das redes sociais. A aposta em fazer áudio e vídeo. Em um momento, puxado pelo iPad, o tablet pareceu que se consolidaria como o dispositivo perfeito para o encontro do impresso com o digital. O que nos orientou foram sempre duas premissas. Uma, a de explorar o que havia de novidade. Outra, procurar o lugar de encaixe perfeito para o jornalismo profissional. Mas a internet cresceu, consolidou-se, virou o mundo cotidiano no qual todos vivemos. E, nisso, deixa claro qual o futuro da imprensa.
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É estar em tudo.
Porque se há algo que sempre foi verdade na relação entre imprensa e leitor, ouvinte ou espectador é que informação é um hábito. Aquele abrir relaxado do jornal à mesa do café, o sentar-se no sofá com a família para o telejornal da noite. Quando se informar é um hábito de todos, a democracia é sólida, e cidadania ocorre. Porque a informação convida ao debate, é ela que nos engaja na comunidade.
O que os populistas do momento fazem é se aproveitar do digital para nos fragmentar em tribos isoladas. Rompem essa comunidade. O caminho do jornalismo é encontrar os momentos dos novos hábitos digitais e estar lá. Há o momento de ligar a Smart TV e assistir a algo, a corrida da manhã que pede um podcast, aquele instante no metrô que chama um texto curto no celular e, claro, ainda o jornal de domingo, enquanto nos largamos na rede.
Mas não basta apenas a notícia, a informação do que acontece. O século XX já passou, e as necessidades são novas. Ela precisa ser complementada com uma versão contemporânea daquele jornalismo das democracias que nasciam no século XVIII. Não a opinião, mas o argumento bem construído como estímulo ao debate. Um convite ao contra-argumento. Sempre complementado com análise: os fatos organizados de forma a explicar o que querem dizer. Este é o desafio de nossa geração de jornalistas. Fazer o que sempre fizemos para trazermos de volta a conversa comum. Para que sejamos uma comunidade.