OS BASTIDORES DA REPORTAGEM QUE IMPULSIONOU O #METOO

OS BASTIDORES DA REPORTAGEM QUE IMPULSIONOU O #METOO

29 de novembro de 2019
Última atualização: 29 de novembro de 2019
Helio Gama Neto

ÉPOCA – 29/11/2019

Jodi Kantor e Megan Twohey

Tudo indicava que o telefonema ia ser complicado: Rose McGowan parecia durona, com aquele cabelo raspado e seus posts agressivos no Twitter. Mas a voz no telefone era de uma pessoa apaixonada e resoluta, que tinha uma história e estava procurando o jeito certo de contá-la. Seus tuítes sobre ter sido estuprada tinham sido apenas insinuações, com poucos detalhes. Pela regra geral das entrevistas, o que era dito podia ser publicado — a não ser que se fizesse outra combinação. Mas qualquer mulher com uma denúncia de agressão contra Harvey Weinstein provavelmente relutaria até mesmo em ter uma conversa inicial. Então Jodi concordou que a conversa seria privada até que elas decidissem o contrário, e McGowan começou a falar.

Em 1997, ela era jovem, tinha acabado de aparecer e fez uma viagem inebriante ao Festival Sundance de Cinema, onde circulava em estreias e festas, com uma equipe de televisão seguindo-a por todos os lados. McGowan havia feito apenas quatro ou cinco filmes, como o terror adolescente Pânico , mas estava se tornando uma das queridinhas do momento, com múltiplos lançamentos só no festival. “Eu era a rainha de Sundance”, ela disse. Filmes independentes estavam em alta, o festival era o lugar certo para se estar e Harvey Weinstein era seu soberano: ali o produtor e distribuidor havia comprado filmes de baixo orçamento como O balconista e Cães de aluguel e transformado em marcos culturais. Em seu relato, McGowan não se lembrava do ano; muitas atrizes recordavam o passado não de acordo com a data, mas com qual filme seu estava sendo rodado ou lançado na época. Mas ela se lembrava do filme em cuja pré-estreia se sentara bem ao lado de Weinstein: “ Indo até o fim ”, ela disse com uma risada incrédula.

Depois, Weinstein marcou uma reunião com ela, o que fazia sentido: o principal produtor do momento queria conversar com uma estrela em ascensão. McGowan foi ao hotel Stein Eriksen Lodge Deer Valley, em Park City, e os dois se encontraram no quarto dele. Ela disse que não houve nada além das conversas de sempre sobre filmes e papéis. Mas, quando McGowan estava saindo, Weinstein a puxou para dentro de um quarto com uma jacuzzi, despiu-a na borda e enfiou à força o rosto entre as pernas dela, de acordo com a atriz. McGowan disse que se lembrava de sentir como se estivesse deixando seu corpo, flutuando até o teto e observando a cena do alto. “Eu estava no mais profundo choque, tomada por um instinto de sobrevivência”, ela disse. McGowan também disse que, para poder ir embora, fingiu um orgasmo. Depois foi pensando em cada passo que precisava dar. “Gire a maçaneta.” “Saia desta reunião.”

Ela disse que, depois de alguns dias, Weinstein deixou um recado na secretária eletrônica de sua casa em Los Angeles com uma proposta indecorosa: outras grandes estrelas mulheres eram suas “amigas especiais”, e ela podia fazer parte do clube também. Chocada e nervosa, McGowan reclamou com seus agentes, contratou um advogado e acabou aceitando uma indenização de 100 mil dólares de Weinstein — que, basicamente, pagou para fazer a história desaparecer sem admitir ter feito nada de errado. Ela disse que doou o dinheiro para um centro de assistência a vítimas de estupro.

McGowan tinha os documentos que provavam que recebera a indenização? “Eles nunca me deram uma cópia.” O problema era mais grave do que Weinstein, disse McGowan. Hollywood era um sistema organizado para abusar das mulheres. O lugar as atraía prometendo fama, transformava-as em produtos altamente lucrativos, tratava seus corpos como se fossem objetos, exigia que tivessem a aparência perfeita e então as descartava. No telefonema, as acusações dela surgiram depressa, uma depois da outra:

“Weinstein — não é só ele, é toda uma máquina, uma rede de abastecimento.”

“Onde não há fiscalização, não há medo.”

“Todos os estúdios culpam as vítimas e pagam indenizações.”

“Quase todo mundo tem um acordo de confidencialidade.”

“Se homens brancos tivessem um parque de diversões, seria esse.”

“As mulheres aqui são tão culpadas quanto os homens.”

“Não saia da linha; você é substituível.”

As palavras de McGowan eram impressionantes. Não era novidade dizer que Hollywood se aproveitava das mulheres, forçava-as a ser submissas e as jogava fora quando envelheciam ou se rebelavam. Mas ouvir um relato de abuso em primeira mão de uma pessoa conhecida, com todos os detalhes perturbadores e envolvendo um dos produtores mais renomados de Hollywood como o assediador era bem diferente: mais agudo, mais específico, repugnante.

Terminamos o telefonema combinando de conversar mais em breve. A atriz tinha uma personalidade incomum, mas as coisas extravagantes que dizia ou fazia, ou as pessoas que havia namorado não eram importantes naquele caso. A questão era como seu relato seria afetado pelos rigores do processo jornalístico e, se chegasse a ser publicado, pela inevitável refutação de Weinstein e, depois, pelo escrutínio do público. Antes que o New York Times sequer considerasse publicar as alegações de McGowan, elas teriam de ser embasadas e, ao final, mostradas para Weinstein. Ele precisaria ter uma oportunidade de reagir a elas. O dever do jornal era ser justo, principalmente dada a gravidade das acusações.

A atriz americana Rose McGowan foi a primeira a aceitar revelar o abuso sofrido quando conheceu o produtor. À época do episódio, ela recebera uma indenização de US$ 100 mil para ficar em silêncio. Foto: Marc Piasecki / Getty Images
Gwyneth Paltrow quase não havia sido incluída na lista de Jodi (Kantor) de pessoas com quem entrar em contato. Ela fora a menina de ouro de Weinstein, uma de suas principais estrelas, e, vinte anos depois, as lembranças de sua carreira de atriz ainda eram associadas a ele. Os dois tinham sido fotografados juntos muitas vezes, uma dupla sorridente em um relacionamento de pai e filha. Em 1999, quando Paltrow ganhou o Oscar de melhor atriz por seu papel em Shakespeare apaixonado , Weinstein estava postado ao lado dela, transbordando de orgulho: ele tinha feito o filme e moldado sua estrela. Na época, o apelido de Paltrow era “primeira dama da Miramax”. Não parecia provável que ela ajudasse o New York Times .

Paltrow não era exatamente uma rebelde como McGowan ou uma ativista como Ashley Judd. Tinha se tornado uma empreendedora do ramo de saúde e beleza e uma figura que algumas pessoas amavam odiar. Mas depois que marcaram um telefonema para o último fim de semana de junho de 2017 a maneira como Jodi via Paltrow mudou: ela era uma fonte que estivera no centro de tudo e que talvez soubesse mais do que qualquer outra pessoa.

Por telefone, a atriz foi educada e pareceu um pouco inquieta. Após as garantias de sempre — sim, aquela conversa era confidencial; sim, Jodi entendia a delicadeza da situação —, Paltrow revelou o lado desconhecido da história de seu relacionamento com Weinstein. Eles tinham se conhecido na frente de um elevador no Festival de Cinema de Toronto em 1994 ou 1995, quando ela tinha mais ou menos 22 anos, lembrou Paltrow. Àquela altura, mal tinha uma carreira. Seus pais, a atriz Blythe Danner e o diretor e produtor Bruce Paltrow, eram bem-sucedidos, e ela tinha recebido críticas estimulantes por um filme chamado A força de um passado , mas ainda estava fazendo testes para conseguir mais papéis. Ali mesmo no elevador, Weinstein deu a Paltrow um voto de confiança. Vi você naquele filme; precisa vir trabalhar para a gente, ela se lembrou de tê-lo ouvido dizer. Você é muito talentosa. “Eu me lembro de me sentir reconhecida graças à opinião dele”, ela disse. Em pouco tempo, Weinstein ofereceu dois papéis a Paltrow. Se ela fizesse uma comédia chamada O primeiro amor de um homem , disse ele, também ia poder ficar com o papel principal em sua futura adaptação de Emma , de Jane Austen — um trabalho dos sonhos, um papel que podia transformar alguém numa estrela. Paltrow se uniu ao clube Miramax, que, na época, pareceu-lhe acolhedor e criativo. “Eu me senti em casa”, ela disse.

Paltrow namorava Brad Pitt, que era bem mais famoso do que ela na época, e vivia voando entre Nova York e Los Angeles. Durante uma daquelas viagens, antes do começo das filmagens de Emma , ela recebeu um fax de um de seus representantes da agência Creative Artists lhe dizendo para ir encontrar Weinstein no hotel Peninsula, em Beverly Hills. Era o mesmo hotel da história de Judd. O que Paltrow contou a seguir também soou familiar. Parecia ser uma reunião normal, feita numa suíte para que eles tivessem privacidade. “Eu fui aos pulos lá para cima, parecia um golden retriever, toda feliz de ver Harvey”, ela disse. Eles falaram de negócios. Mas, no final, Weinstein colocou as mãos em Paltrow e perguntou se eles podiam entrar no quarto e trocar massagens. Ela disse que mal conseguiu processar o que estava acontecendo. Para ela, Weinstein era como um tio. A ideia de estar interessado nela sexualmente a deixou chocada e enojada. Ele pediu de novo que fossem para o quarto, disse Paltrow. Ela deu uma desculpa e disse que precisava ir embora, mas “não de modo a fazê-lo pensar que tinha feito alguma coisa errada”, disse. Assim que Paltrow foi embora, ela contou o que tinha acontecido a Brad Pitt, depois a alguns amigos, familiares e a seu agente.

A próxima parte da história de Paltrow divergia do relato de Judd e fazia com que tivesse potencial de ser mais significativa. Quando Paltrow e Pitt encontraram Weinstein na estreia de uma peça, Pitt confrontou o produtor e mandou-o não encostar mais nela. Na época, Paltrow se sentiu aliviada: seu namorado era seu protetor. Mas, depois que ela voltou para Nova York, Weinstein telefonou e a ameaçou, brigando com ela por ter contado o que tinha acontecido a Pitt. “Ele disse alguma coisa tipo ‘vou arruinar sua carreira’”, contou. Ela se lembrava de estar em seu antigo apartamento na Prince Street, no SoHo, com medo de perder os dois papéis, especialmente o principal em Emma . “Eu não era ninguém, era uma menina, tinha assinado um contrato. Fiquei paralisada, achei que ele ia me demitir”, ela disse. Paltrow tentou fazer com que o relacionamento voltasse para o terreno profissional, explicando para Weinstein que contar para o namorado tinha sido natural, mas que ela queria deixar aquele episódio para trás e seguir em frente. “Eu sempre quis paz, nunca quis nenhum problema”, ela disse. Durante um tempo, o relacionamento deles foi restabelecido. “De um jeito engraçado, eu pensei: bom, isso ficou para trás”, ela disse.

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Quanto mais bem-sucedida se tornava sua parceria com Weinstein, menos Paltrow sentia que podia falar sobre o episódio desagradável que tinha ocorrido no início da colaboração deles. “Eu tinha essa carreira incrível lá, então, de certa maneira, não podia reexaminar o que havia acontecido.” “Era esperado que eu guardasse segredo.” Segundo Paltrow, a cultura de Hollywood era engolir as reclamações e suportar aquele tipo de comportamento. Ela não pensou no ocorrido como parte de algo maior ou mais sistêmico. Durante seus anos na Miramax, Paltrow de vez em quando ouvia algum boato perturbador sobre Weinstein, mas nunca com detalhes. Ele era abusivo de outras formas que faziam o momento no quarto parecer brando. Atirava coisas. Suas diatribes ficavam além de qualquer coisa que Paltrow e os outros jamais tinham visto vindo de um homem adulto. Os funcionários da Miramax que ela conhecia viviam com medo da instabilidade dele. “É a bomba H, a bomba H está chegando”, alertavam eles quando Weinstein se aproximava.

“‘EU FUI AOS PULOS LÁ PARA CIMA, PARECIA UM GOLDEN RETRIEVER, TODA FELIZ DE VER HARVEY’, ELA DISSE. ELES FALARAM DE NEGÓCIOS. MAS, NO FINAL, WEINSTEIN COLOCOU AS MÃOS EM PALTROW E PERGUNTOU SE ELES PODIAM ENTRAR NO QUARTO E TROCAR MASSAGENS”

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Depois que dois filmes da Miramax estrelando Paltrow — Mais que o acaso , de 2000, e Voando alto , de 2003 — fracassaram, ela disse que a maneira como Weinstein a tratava mudou. “Eu não era a menina de ouro, com o toque de Midas”, ela disse. “Meu valor tinha diminuído aos olhos dele.” Quando Paltrow ficou grávida pela primeira vez, ela discretamente se afastou do produtor. As coisas ficaram assim até 2016, quando Miriam Weinstein, mãe do produtor e figura adorada na Miramax, faleceu, e Paltrow decidiu escrever para ele um e-mail curto de condolências. Para choque dela, Weinstein leu o e-mail em voz alta no funeral e ligou para Paltrow pouco depois — para agradecer, imaginava ela. Mas, depois das gentilezas, Weinstein voltou a pressioná-la. A New York Magazine estava trabalhando numa matéria que ia denunciar a maneira como ele tratava as mulheres. Não tinham nenhuma prova, afirmou Weinstein para Paltrow. Ele queria que ela prometesse que não ia falar sobre o incidente no Peninsula tantos anos antes. “Eu só quero proteger as pessoas que fizeram o contrário e aceitaram”, disse Weinstein, referindo-se às mulheres que haviam sucumbido às suas sugestões. Paltrow recusou o pedido de entrevista feito pela revista, mas evitou afirmar se algum dia diria alguma coisa. As pessoas precisavam saber daquela história, disse Paltrow a Jodi.

Durante muito tempo, ela havia presumido que jamais revelaria o que tinha acontecido. Mas, vinte anos depois, tudo parecia diferente, e era por isso que ela estava ao telefone agora. Paltrow deixou claro que estava muito longe de aceitar ser citada na matéria. Ela não estava em um bom momento em termos de relações públicas, para dizer o mínimo. Na época, sua empresa, Goop, uma marca de estilo de vida saudável com e-commerce, vendia um ovo de jade de 66 dólares que a compradora devia inserir na vagina para “ajudar a cultivar a energia sexual, abrir os caminhos do chi no corpo, intensificar a feminilidade e revigorar nossa força vital”, de acordo com o site.

Os ovos tinham gerado meses de escárnio e acusações de que Paltrow estava sendo irresponsável ao vender produtos cujos benefícios para a saúde eram duvidosos. “Em breve no Goop, por 77 dólares, fitas de teste orgânicas e sustentáveis para medir o pH da urina, imagino”, escreveu a dra. Jen Gunter, uma obstetra que fez críticas mordazes ao produto e a outras práticas que o Goop tinha defendido. No Instagram, Paltrow demonstrava a tranquilidade de sempre. Mas, na intimidade, estava arrasada e sem saber se conseguiria aguentar mais controvérsia. Tinha certeza de que qualquer matéria sobre ela, Harvey Weinstein e sexo viraria uma notícia sensacionalista, o escândalo protagonizado por celebridades daquela semana. “Eu não sabia se ia ser arrastada na lama”, ela disse. “É o que em geral acontece com as mulheres, se você for ver o histórico.” Mais de cem pessoas estavam trabalhando para Paltrow, pagando financiamentos e criando filhos, e se meter em mais uma controvérsia poderia ser prejudicial para elas também. “Não posso destruir a empresa”, explicou ela. Paltrow decidiu que ia usar sua rede de contatos de Hollywood para ajudar Jodi a identificar mais vítimas de Weinstein e convencê-las a cooperar, de modo que as mulheres pudessem carregar juntas o fardo da denúncia (Jodi não podia mencionar Judd para ela ou vice-versa). Paltrow quis saber um pouco mais sobre os protocolos do jornalismo investigativo, mencionando meia dúzia de famosas para quem queria ligar. Jodi sugeriu outras. Paltrow estava de férias com os filhos na Europa e suas redes sociais mostravam taças de vinho, piqueniques e lagos na Itália. Privadamente, ela também enviava mensagens de texto para atrizes com quem tinha trabalhado ou que conhecia, pedindo o contato de fulana e perguntando se outras mulheres topavam dizer o que sabiam.

Trechos dos capítulos 1 e 2 do livro
“Ela disse — os bastidores da reportagem que impulsionou o #MeToo” (Companhia das Letras), escrito pelas jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey, ambas ganhadoras do Pulitzer e que conduziram a investigação do “New York Times” sobre o escândalo de assédio sexual do produtor Harvey Weinstein


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Helio Gama Neto