SIN PERDER LA CONEXIÓN

SIN PERDER LA CONEXIÓN

25 de outubro de 2019
Última atualização: 25 de outubro de 2019
Helio Gama Neto

ÉPOCA – 25/10/2019

Abraham Jiménez Enoa, de Havana, com tradução de Miguel Gracia

Um amigo me escreveu uma mensagem por WhatsApp: “Onde você está? Preciso vê-lo”. Meia hora depois, nos encontramos em uma cafeteria no Vedado, bairro histórico no centro de Havana. Ele havia rompido com sua parceira. A relação tinha quase cinco anos. Meu amigo me contou qual havia sido a gota d’água: “Quando víamos um filme, ela ficava prestando atenção no telefone. Se íamos a um restaurante, não conseguia deixar o telefone com a tela para baixo. Sua vida é o telefone. Parecia que eu não existia. Me cansei”. Naquela hora, sentado no café, o relato me surpreendeu. Não soube o que lhe responder. Dei uma olhada para o lado e vi dois jovens que tomavam uma cerveja em outra mesa. Os rapazes não se olhavam nos olhos, tinham a vista fixa na tela de seus smartphones. Um navegando no Instagram e o outro no Facebook. Naquela hora, ali no café, ficou claro que eu estava diante da imagem que resume os tempos atuais em Cuba.

A ilha já tinha mudado com a chegada da internet, em 2015. Mas foi em dezembro do ano passado que veio o grande impulso, quando as pessoas passaram a ter acesso completo à web a partir de seus celulares. Antes disso, smartphones serviam apenas para fazer chamadas e ler e-mails controlados pelo governo. Ter a rede ao alcance da mão modificou a conduta de um país que por anos esteve enclausurado nas lógicas importadas da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e agora vive um gradual desmembramento de seu sistema. No muro de concreto que isolava Cuba do resto do mundo, pouco a pouco, começaram a aparecer rachaduras.

Um tornado deixou um rastro de destruição na ilha no começo deste ano. Com a ajuda da internet, pessoas foram às ruas ajudar as vítimas. Foto: Yamil Lage / AFP / Getty Images
Um tornado deixou um rastro de destruição na ilha no começo deste ano. Com a ajuda da internet, pessoas foram às ruas ajudar as vítimas. Foto: Yamil Lage / AFP / Getty Images
Tudo começou em 2008, quando Raúl Castro assumiu oficialmente a Presidência da nação, após anos de mandato interino. Em 2006, uma doença intestinal havia obrigado Fidel Castro, depois de 49 anos no poder, a abandonar todos os seus cargos políticos e depositá-los sobre os ombros de seu irmão mais novo, que, ao assumir o posto, implementou uma série de reformas socioeconômicas que mudaram a fisionomia do país. O pacote de modificações permitiu que os cubanos pudessem comprar casas e carros e passar férias nos hotéis da ilha. Antes, esse serviço estava destinado apenas ao turismo estrangeiro. O novo mandatário também abriu a possibilidade de criar negócios privados e permitiu que os cidadãos viajassem para o exterior. Três anos antes de entregar o assento a Miguel Díaz-Canel, o atual presidente, Raúl Castro executou a última reforma transcendental de seu mandato: outorgou o acesso à internet.

Desde 2015, segundo o Departamento Nacional de Estatísticas (ONE, na sigla em espanhol), o governo instalou 1.400 zonas públicas com conexão Wi-Fi, desenvolveu um programa que ofereceu acesso à rede a 70.400 lares — dos 3,8 milhões de todo o país — e, em dezembro do ano passado, colocou em funcionamento a tecnologia 3G, que já atraiu 2,5 milhões de usuários. A We Are Social, uma agência britânica dedicada à análise das tendências digitais, publicou um relatório em que revela que 56% dos 11,2 milhões de cubanos já estão conectados à rede. A pesquisa declara que o crescimento do percentual de habitantes conectados em Cuba foi o 16º maior de uma nação em 2018. A internet em Cuba, ao contrário do que previu o governo, deu a seus cidadãos a possibilidade de expressar-se livremente em suas plataformas. Depois do triunfo da Revolução Cubana em 1959, na ilha reinou um regime totalitário baseado nas doutrinas stalinistas que julgou e condenou o pensamento e as ideologias diferentes do sistema imposto. Os cidadãos cubanos tiveram de esperar quase 60 anos para conseguir se empoderar e levantar a voz — com o empurrão da internet. A partir do espaço virtual cubano, emergiu, finalmente, uma narrativa alternativa à voz oficial estabelecida por décadas.

O acesso à internet começou ainda na Presidência de Raúl Castro, o irmão de Fidel, que fez um amplo programa de reformas econômicas. Foto: Guillermo Nova / picture alliance / Getty Images
O acesso à internet começou ainda na Presidência de Raúl Castro, o irmão de Fidel, que fez um amplo programa de reformas econômicas. Foto: Guillermo Nova / picture alliance / Getty Images
O interessante é que essa inconformidade com o governo, muito evidente no mundo virtual, está tendo efeitos concretos nas ruas. A primeira evidência apareceu em janeiro, quando um devastador tornado deixou um saldo de sete mortos, 200 feridos e milhares de edifícios parcial ou totalmente destruídos. A população não esperou até que o governo iniciasse uma estratégia de recuperação. As imagens e as reclamações nas redes sociais foram tão potentes que os cidadãos foram às ruas sem a anuência do Estado para ajudar as vítimas. Outro acontecimento que evidenciou o uso da rede foi o referendo constitucional realizado em fevereiro. Depois de 43 anos da aprovação da Carta Magna anterior, mais de 7,8 milhões de cubanos foram às urnas para um referendo constitucional. Foram contabilizados mais de 1 milhão de cidadãos entre os que votaram “Não”, aqueles cujas cédulas foram anuladas e os que as deixaram em branco. As cifras da divergência foram inéditas. Em 1976, o texto constitucional havia sido aprovado por 97,7% dos eleitores. Dessa vez, o “Sim” caiu para 86,8%. O motivo: uma campanha a favor do “Não” inundou as redes sociais nos meses anteriores à votação.

A maioria dos votantes contrários à nova Constituição reclamou que o documento apontava na direção de uma verdadeira democracia participava, não fosse por seguir reconhecendo o Partido Comunista como “a força dirigente superior da sociedade”. Mas não era só isso. Pelo texto aprovado, muitos princípios constitucionais continuam condicionados à avaliação do governo, além de direitos fundamentais como a liberdade de imprensa, as emissões de rádio e TV e a associação política permanecerem expropriados.
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Praticamente todos os usuários de internet estão vinculados a alguma rede social. Por isso, as convocatórias nascidas nas diferentes plataformas interativas têm sido eficazes. Há exemplos de diferentes áreas. Em março, vários grupos independentes do Estado conseguiram se organizar para limpar espaços públicos num movimento que chamaram de #TrashChallenge. De modo similar, centenas de pessoas se reuniram e marcharam em abril para expressar sua discordância quanto aos maus-tratos de animais e exigir uma lei que regule sua proteção. Das redes sociais também nasceu a convocatória para a Marcha do 11M. Havia sido programado, para o dia 11 de maio, o já habitual evento para celebrar o Dia Mundial da Luta contra a Homofobia, dentro da jornada nacional realizada pelo Centro Nacional de Educação Sexual (Cenesex). Diferentemente dos 12 anos anteriores, no entanto, dessa vez a manifestação havia sido suspensa pelo governo. O Cenesex, em uma nota à imprensa carregada de ambiguidade, disse que o cancelamento se devia à “atual conjuntura que está vivendo o país” e “determinadas circunstâncias que não ajudam seu desenvolvimento exitoso”. A comunidade LGBTI decidiu não acatar a ordem central e, com a ajuda da internet, convidou a todos para sair à rua e celebrar. Os participantes acabaram sujeitos a uma brutal repressão policial. Rostos ensanguentados, policiais à paisana estrangulando manifestantes, pessoas agredidas por três ou quatro repressores, gente encarcerada. Esses foram alguns dos resultados do que deveria ter sido uma manifestação pacífica e que se espalharam como pólvora pela internet.

Em junho, o Twitter virou um vespeiro. Usuários da rede social se organizaram e, durante várias semanas, demonstraram sua insatisfação com os altos preços e a lentidão do serviço de internet oferecido pela ETECSA, a única empresa de telecomunicação do país. Com a hashtag #BajenLosPreciosDeInternet, a sociedade digital exigiu do governo uma redução dos preços: uma hora de internet em Cuba custa US$ 1, e o salário médio mensal está por volta de US$ 50. Diante do movimento, o governo temia que a situação começasse a sair de seu controle. Por isso, em julho, publicou uma série de leis sobre a informatização da sociedade que buscam “elevar a soberania tecnológica em benefício da sociedade, da economia, da segurança e da defesa nacional” e “combater as agressões cibernéticas”. As regulações penalizam os usuários por “difundir, por meio das redes públicas de transmissão de dados, informação contrária ao interesse social, à moral, aos bons costumes e à integridade das pessoas”. Além de declarar a proibição de “hospedar um site em servidores localizados em um país estrangeiro, que não seja como espelho ou réplica do site principal em servidores localizados em território nacional”. O objetivo fundamental das normas é expandir o controle estatal ao universo digital. Assim, no terreno da ilegalidade, caem todos os meios de imprensa independentes e os blogs que floresceram na última década na ilha. A violação dessas leis é acompanhada por multas que chegam aos US$ 50.

Meses antes de as medidas passarem a vigorar, Ulises Rosales, um general de divisão de 77 anos e que até algumas semanas atrás era vice-presidente do país, teve a sinceridade — ou o deslize, não se sabe ao certo — de reconhecer, em sua conta no Twitter: “Com as novas tecnologias já passou a etapa em que éramos os donos da notícia”. Uma nostálgica alusão aos tempos em que, sequestrando a verdade de um país, o governo impunha uma realidade transfigurada.

Das redes sociais também nasceu a convocatória para a Marcha do 11M, já habitual evento para celebrar o Dia Mundial da Luta contra a Homofobia. Foto: Yamil Lage / AFP
Das redes sociais também nasceu a convocatória para a Marcha do 11M, já habitual evento para celebrar o Dia Mundial da Luta contra a Homofobia. Foto: Yamil Lage / AFP
O último fato marcante ocorreu em agosto. Uma centena de usuários da Snet, a rede que há anos interconecta, de maneira independente, milhares de pessoas em Havana, se reuniu em frente à sede do Ministério de de Comunicações para manifestar sua insatisfação com as resoluções que banem definitivamente as redes sem fio locais. Essa cronologia de fatos teria sido impensável em uma Cuba sem internet. A rede promoveu o dissenso na ilha e deu ferramentas aos cidadãos para mostrarem suas divergências com o regime que reina na nação, um sistema político que, diante da tecnologia, se revela frágil e evidencia seus buracos. O governo cubano, ao contrário do que certamente havia previsto, deu um tiro no próprio pé ao conceder o acesso à rede a seus cidadãos. Seu chão estremeceu ao perder o controle sobre as pessoas. Talvez por isso Ernesto Rodríguez, vice-ministro de Comunicações, tenha declarado: “Não serve de nada proporcionar serviço de internet aos que não sabem como distinguir o que é útil do que é danoso. Nem tudo na internet é bom”. Aparentemente, o governo teme uma nova revolução, uma revolução digital.


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