Feminista erra história, acadêmico inventa tuíte e jornalistas…
VEJA – 27/05/2019
Vilma Gryzinski
No dia a dia, nem nos espantamos mais. Principalmente num país onde manifestação a favor do governo é considerada ruim e manifestação bem grande a favor do governo é pior ainda. Manifestação a favor, bem grande, disseminada, pacífica e com reivindicações legítimas? Ah, o cara já caiu.
Vamos aos acontecimentos fora do dia a dia e fora desse país aí que só pode ter sido inventado.
Primeiro, o caso de Ian Bremmer. Cientista político, professor da New York University, influencer global, vários livros importantes e, principalmente, criador do Eurasia Group, precursor no negócio de análises de risco.
Ah, sim, também escreve na revista Time, onde fez o perfil de Jair Bolsonaro para os cem personagens mais importantes do ano.
Poucos notaram, mas ficaram registradas observações corretas como associar o presidente à “melhor chance do Brasil em uma geração de executar reformas econômicas para domar a dívida em ascensão” (fora ser o “pôster boy da masculinidade tóxica” etc etc etc).
Adicione-se o fato de que o grupo de prognósticos profissionais passou longe de algo comezinho como a realidade dos fatos (o adversário derrotado era “um candidato esquerdista forte”, tinha boas chances de vencer no segundo turno etc etc etc).
O irônico e brilhante Bremmer fez a seguinte contribuição à própria biografia: inventou um tuíte de Donald Trump elogiando Kim Jong-un, em detrimento de seu provável, no momento, adversário democrata no ano que vem, Joe Biden.
“Kim Jong-un é mais inteligente e daria um presidente melhor do que Joe Biden Soneca.”
Vários jornalistas repetiram o tuíte inventado como se fosse verdadeiro, reagindo nos graus habituais de fúria, raiva, revolta e outros bichos.
É preciso lembrar o contexto. Em visita ao Japão, o país mais diretamente ameaçado pela nuclearização da Coreia do Norte, Trump fez uma piada, lembrando que Kim Jong-un havia xingado Biden, provavelmente “querendo me agradar”.
Diante do bafafá do tuíte inventado, Bremmer disse que era brincadeira, obviamente. Mas uma brincadeira “plausível. Especialmente no Twitter, onde as pessoas automaticamente apoiam as próprias posições políticas”.
Dá para a pessoa mais importante de um grupo de análise de riscos, que vende confiabilidade e credibilidade, fazer piadinhas assim? Será que está sendo contaminado pela masculinidade tóxica?
E, principalmente, dá para jornalistas e até políticos acreditarem no tuíte inventado, sem perder meio minuto para checar?
Checagem é uma palavra que nos leva ao segundo caso recente, e espantoso, envolvendo nomes conhecidos do mundo intelectual.
Naomi Wolf, a badalada autora feminista, escreveu um livro inteirinho para comprovar sua tese de que “várias dezenas” de homossexuais foram condenados à pena de morte na Inglaterra vitoriana por praticar sua modalidade preferida.
Tese não é força de expressão: o livro é baseado em seu trabalho de doutorado em Oxford sobre “sexo, censura e criminalização do amor” no século XIX.
Problema: numa entrevista de rádio, o historiador Matthew Sweet simplesmente demoliu o fundamento central do livro.
A expressão “morte registrada” usada nas pesquisas da autora como sinônimo de execução significa exatamente o oposto: os juízes podiam cancelar a execução nos casos em que pretendiam comutar a pena de morte.
E mais, o crime de sodomia abarcava o abuso de menores, não apenas o sexo consentido entre homens. Outra coisa: a morte de John Addington Symonds, poeta e historiador do Renascimento italiano, não teve nada a ver com a perseguição a gays, esta sim ocorrida e comprovada.
Naomi Wolf tem prática com a maleabilidade dos fatos. Em O Mito da Beleza, o livro citado como palavra sagrada sobre a total e emburrecida fragilidade feminina diante da indústria dos cosméticos, ela dizia que 150 mil americanas morriam por ano de anorexia.
Uma cifra completamente errada em que o número de jovens e mulheres afetadas pelo distúrbio é confundido com o de vítimas fatais.
Mais recentemente, ela insinuou que os vídeos de decapitação de reféns ocidentais feitos pelo ISIS eram obra de propaganda política dos Estados Unidos e Israel.
Qual editora não checaria os dados de alguém com esse perfil? Não a de Naomi Wolf.
Ironicamente, nos tuítes sobre os vídeos do Estado Islâmico, ela frisou que é jornalista e sabe muito bem que cada notícia precisa de duas fontes para ser confirmada. Mesmo assim, confundiu a natureza da organização que localiza e checa informações procedentes de grupos radicais. Sem falar na maluquice conspiracionista.
Manipular informações ou divulgar trechos que as tiram do contexto são recursos comuns de maus jornalistas ou daqueles movidos acima de tudo pelo princípio da militância política. Ou da falta de caráter.
Tudo isso se junto no caso da entrevista dada por Roger Scruton, “filósofo de direita” como costuma ser descrito pelo lado oposto, como se fosse uma espécie de associação com o crime.
Scruton foi entrevistado por George Eaton, da New Statesman, publicação tão esquerdista que tem no currículo a recusa a um artigo de George |Orwell.
Eaton reproduziu trechos isolados da entrevista pelas redes sociais, fazendo parecer que o veterano intelectual chamava os chineses de robôs, endossava teses conspiracionistas sobre o George Soros, o bilionário patrocinador de causas esquerdistas, e outras barbaridades.
Scruton foi demitido do cargo voluntário de uma comissão do Ministério da Habitação destinada a uma das causas mais nobres do mundo: melhorar a estética de pragas arquitetônicas que acabam com o visual de grandes e pequenas cidades.
Na realidade, ele havia falado que os chineses estão sendo transformados em réplicas robóticas idênticas. Quem conhece as táticas de controle, propaganda e, agora, dos “créditos sociais” dados aos cidadãos considerados bons, não acha nada estranho.
O maior “pecado” do entrevistado foi falar bem de Viktor Orban, o primeiro-ministro da Hungria que progressistas adora odiar – inclusive aqueles que são pagos por organizações financiadas por Soros, seu inimigo-mor.
Orban não é antissemita e “quem acha que Soros não tem um império na Hungria não observou os fatos”, disse ele, referindo-se à universidade e às ONGs do bilionário de origem húngara.
E o mundo caiu para Scruton por ter declarado que islamofobia foi um termo “inventado pela Irmandade Muçulmana para impedir a discussão de um assunto importante”.
Fuzilado sumariamente nas redes sociais, Scruton, de 75 anos, resistiu, brigou de volta, divulgou a gravação do original da entrevista e conseguiu o apoio de intelectuais importantes. Uma exceção.
Em termos de comportamento duvidoso no mundo do jornalismo, poucas coisas se comparam ao que está acontecendo na Áustria.
O primeiro-ministro Sebastian Kurz foi derrubado num ato de vingança do partido de direita ultranacionaista que fazia parte da coalizão de governo.
O partido de centro-direita de Kurz, 36 anos, apelido Boy, havia acabado de sair consagrado das eleições para o Parlamento Europeu.
O conflito aconteceu depois que duas publicações alemãs provocaram a renúncia de Heinz-Christian Strache, o líder da direitona envolvido no “escândalo de Ibiza”.
Numa casa na ilha espanhola do embalo, Strache aparece bebendo e tramando um toma lá da cá nada republicano com a suposta sobrinha de um oligarca russo.
A certa altura, ele desconfia da loira bonitona por causa das unhas dos pés. “Russas desse nível não têm unhas sujas”, comenta com Johann Gudanus, o líder do partido no Parlamento e companheiro de copo. E continua bebendo.
Há três dias, um advogado austríaco chamado Ramin Mirfakhai confirmou uma suspeita generalizada: foi ele quem colocou a loira falsa em contato com Strache para o flagrante, feito há dois anos.
Tudo fazia parte de “uma ação cívica que usou métodos de jornalismo investigativo”, disse.
Como se já não bastassem os jornalistas de verdade, com seus erros, suas paixões políticas e seus humanos escorregões, ainda tem esse negócio. Sem contar as unhas sujas.